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Margarida Constantino

Ler para saber dizer não

A literatura, como a vida, está cheia de metáforas e histórias inspiradoras. Há personagens que nos ensinam a coragem de afirmar as nossas convicções. A célebre frase “Prefiro não” da personagem Mr. Bartleby, de Herman Melville, é um bom exemplo. O seu contraponto na literatura portuguesa, na minha opinião, é o Sr. José, personagem central da obra Todos os Nomes, de José Saramago.

Os dois homens são escriturários, aparentemente sem família nem objetivos. Vivem numa monótona repetição de rotinas. Apesar das semelhanças, são personagens inspiradoras por motivos opostos: enquanto José se defende da rotina com um passatempo, Bartleby deixa-se levar pelo hábito até ao desespero.

José mora num apartamento contíguo à conservatória, onde é funcionário; não perde tempo entre o trabalho e o período de descanso, que utiliza como escape, e que o vai transportar para uma nova dimensão em busca do seu prazer. Bartleby quebra a fronteira entre o trabalho repetitivo e o vazio da sua vida privada ao tomar a decisão de deixar a sua casa para ir morar, clandestino, no escritório, com vista para uma parede branca. Esta parede é a representação dos seus objetivos; é através dela que se esconde do exterior e é para ela que olha quando recusa as ordens de trabalho. Ele precisa desta parede branca, tem esse direito. Viver para apenas estar vivo é um desejo tão válido como o sonho de alcançar metas olímpicas.

Por seu turno José procura conhecer insignificâncias sobre gente célebre, vive para encontrar um fio condutor que una os pontos no caos. Preenche a sua solidão em busca de pormenores irrelevantes sobre outras pessoas, vivas ou mortas. Nessa indagação sem sentido, acaba por encontrar um interesse pelo qual lutar. A recusa de Bartleby é pelo direito de apenas ser. “Prefiro não”, é uma frase de resistência passiva à rotina. Bartleby é corajoso, mostra a responsabilidade de seguir contra a corrente, não hesita em assumir a sua opinião.

Estas duas personagens ensinam que é tão válido procurar ativamente como recusar com passividade. Ambas as atitudes exigem o conhecimento de si próprio e a coragem de defender o seu ponto de vista. Todos temos o direito de ser quem queremos. E a coragem, temos?

Quantas vezes nos encontramos presos em situações que não desejamos nem escolhemos? Quantas vezes acedemos ao sim, só para não desapontar os outros?

Dar preferência ao não, é sermos fiéis a nós próprios, não ceder a convenções e viver de acordo com os nossos valores. Como diria outro nome grande da literatura, José Régio, “não sei por onde vou, sei que não vou por aí”. Podemos ainda não ter uma ideia acabada do que queremos, mas sabemos que há princípios invioláveis. Quando passamos a respeitar quem é diferente de nós, a perceber que somos todos únicos, então estamos a caminhar em direção à nossa felicidade. Quando assumimos as nossas diferenças e o lugar que queremos ter na família, no grupo, na sociedade, respeitamo-nos. Exprimir a nossa singularidade é um direito do qual nos esquecemos ou temos medo. O conhecimento profundo de nós e a autoaceitação, com todas as qualidades e os defeitos que temos, servem para nos dar a confiança de sermos, mesmo contra corrente.

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Margarida Constantino

Margarida Constantino nasceu em Torres-Vedras em 1961. Com formação académica em Direito é licenciada em Ciências Sociais e em Política Social. Viveu em várias cidades e vilas do centro de Portugal, em Angola (Moçâmedes e Luanda) e em Inglaterra (Cheltenham), atualmente reside em Montargil.

Exerceu diversas profissões, foi ourives, assistente social, cuidadora de idosos, consultora, formadora. Estuda Astrologia desde 2008, é Mestre de Reiki, dedica parte do seu tempo ao Desenvolvimento Pessoal. Desde sempre amante das artes e da escrita, ganhou um Prémio de Poesia 1972, em Angola. Manteve um Blog entre 2008 e 2011.

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