Conseguia imaginar o som dos ramos das árvores a sacudirem-se como chicotes. As pessoas caminhavam curvadas, com a cabeça inclinada para a frente, os braços cruzados contra o peito, escondidas por casacos, golas altas, cachecóis e capuzes.
Encostada ao parapeito, do lado de dentro da janela, também eu de braços cruzados, via-me obrigada a libertar uma das mãos, a cada quatro ou cinco expirações, para desembaciar o vidro.
Lá fora, o vento adivinhava-se agreste e frio, mas não o suficiente para me intimidar.
Pelo contrário, dava-me ganas.
Troquei as pantufas pelas botas, vesti o casaco, tapei o pescoço e o cabelo com um cachecol de lã, pus a mala a tiracolo e saí.
Tudo o que precisava era de meio quilo. Meio quilo mal pesado, dois punhados, o que fosse. Desde que fosse seco.
Começou assim que cheguei àquela terra. Caiu-me um desconforto no peito, falta de apetite, insónias e uma necessidade incontrolável de suspirar e de abraçar os joelhos. Não havendo tradução direta numa só palavra para o conceito de saudade, era assim que descrevia mentalmente o que sentia, cada vez que algum dos nativos me perguntava se estava doente.
Não tenho nada, estou só cansada, respondia-lhes.
Passei muito meses sem encontrar alguma coisa que me trouxesse conforto ao chegar a casa. Nenhum paladar, nenhum aroma, nenhuma voz, nenhum telefonema ou canção. Já tinha desistido de procurar, quando o descobri, há algumas semanas, na venda de um velho cabo-verdiano, no outro lado da cidade. Desde então, passei a ir lá, de propósito, todas as sextas-feiras, ao final da tarde.
Ele era um homem alto e magro, com as calças demasiado curtas para a extensão da perna, deixando a descoberto a pele ressequida das canelas, camisa de flanela com borbotos e uma boina verde, com a estrela da revolução cubana, a esconder-lhe uma extensa careca, que se adivinhava pela ausência de cabelo na nuca e atrás das orelhas.
Risonho, sempre que me via entrar na pequena loja. Leva desse também, dona, dizia-me em bom português, no seu sotaque, sentado num banquinho de madeira, enquanto agarrava e largava punhados de feijão congo, com a mão dentro do saco de serapilheira que descansava no chão, ao seu lado.
Eu sorria-lhe de volta, apesar de nunca ceder ao seu apelo.
Gostava de o ouvir, de trocar algumas frases na nossa língua. Mas não era suficiente. Nem para mim, nem para ele. Nada mais do que um agrado fugaz, uma ilusão transitória.
As minhas visitas regulares à loja tinham outro propósito. Um único propósito.
Eu precisava, apenas e sempre, de feijão encarnado.
Saí do estabelecimento com um pequeno saco de plástico fechado com um nó, dentro da mala. Abriguei-me do vento na reentrância de um prédio, enquanto esperava pelo transporte.
Anoitecia depressa, os automóveis circulavam com os faróis acesos, a iluminação da rua estava ligada e eu ainda tinha um longo caminho pela frente. Duas carreiras de autocarro, entremeadas por um percurso de metro.
Após uma interminável espera de oito minutos, vi-o contornar a curva. Vinha quase cheio. Sentei-me num dos poucos lugares vagos, ao fundo, junto à janela. Virei o rosto para o exterior, a fim de evitar a troca de olhares com qualquer um dos restantes passageiros. Sentia que, ali, nunca deixaria de ser uma estrangeira. À minha volta, tudo acontecia naquela outra língua. As conversas, os risos, os cartazes publicitários, os horários, o sentido do trânsito.
Ao sair da viatura, cobri a cabeça com o cachecol, para me proteger da chuva miudinha que, entretanto, começara a cair, e cruzei os braços contra o peito para contrariar o vento frio que ainda se mantinha.
Enquanto descia as escadas da estação de metro, pareceu-me ouvir o meu nome, desvirtuado pelo sotaque daquele país. Pelo canto do olho, reconheci a supervisora da fábrica onde trabalho. Fingi, sem sucesso, não a ver. Maria!, gritou outra vez. A mesma palavra, as mesmas letras, pela mesma ordem, mas com o r enrolado e o último a a ser levado de arrastão. Derrotada, sorri, apenas por cortesia. Aquele nome, tão meu, tão nosso, deixava de me pertencer. E eu, a cada dia, mais incapaz de me reconhecer.
Percorri o que restava do caminho com a versão traduzida da minha identidade a ecoar-me dentro da cabeça.
Entrei em casa, atirei a mala, o cachecol e o casaco para um canto do sofá e dirigi-me para a cozinha, com o pequeno saco de plástico transparente nas mãos.
Cobri o canto da mesa com um pano e espalhei o meu tesouro sobre ele. Escolhi o feijão, descartando os furados, e deixei-o a pernoitar dentro de um alguidar, coberto com água fria. Tal qual a minha memória ditava que a avó Lurdes fazia.
Na tarde seguinte, escorri, lavei e deitei o feijão na panela de pressão. Juntei um coto de chouriço de carne, cobri com água nova, apertei a tampa e liguei o lume.
Sentei-me num canto da cozinha, com as costas e a cabeça encostadas à parede e esperei.
Minutos depois, com os olhos arregalados, vi o pipo começar a rodar com timidez. Libertava os primeiros assobios de vapor e, com eles, os aromas. Feijão encarnado e chouriço de carne.
Desci as pálpebras. O meu corpo, devagar, descolava-se do banco e da parede.
De longe, chegava-me à memória o arrastar dos chinelos pelo chão de tijoleira, o abrir e fechar das gavetas de pinho maciço, o chiar das dobradiças das portas empenadas dos armários, o estalar das folhas de couve ao serem cortadas pela faquinha de cabo de madeira.
Inspirei fundo e concentrei-me.
Um arrepio subiu-me pelas costas até à pele por trás das orelhas. Estávamos na cozinha da avó Lourdes.
Ela, de volta do fogão, e eu, ajoelhada sobre um banco de madeira, com o rabo empinado e os cotovelos apoiados na pedra mármore da bancada. A pele dos meus joelhos, suada, colara-se ao oleado florido que forrava o assento do pequeno banco, cujas pernas estavam pintadas de branco, com várias mazelas de tinta lascada que mostravam que antes tinham sido azuis, antes disso verdes e antes disso amarelas.
As portadas da janela para o quintal deviam estar abertas. Conseguia ouvir as galinhas a cacarejar lá fora, a avisar-nos de que tinham posto ovos, o rebuliço dos gatos com o cio, o restolhar dos ramos das oliveiras, sacudidos pela algazarra dos pardais.
Chegava-me, de um lado, o cheiro de laranjas acabadas de descascar e, do outro, o crepitar do posto de rádio, mal sintonizado, que alternava a Amália com o Marceneiro.
Mordi o lábio inferior e cerrei os olhos com mais força.
Estava perto. Sabia que estava muito perto.
Maria!, ouvi, finalmente.
Maria!
O meu nome, Maria, com o r convicto e o último a irredutível, sem se deixarem enrolar nem arrastar para lado nenhum.
Sim, avó?, murmurei. Estou aqui.
Uma lágrima de júbilo rebolou-me pela cara. Deixei-a temperar-me o sorriso.
O tempo podia apagar a minha sombra. Calar o eco dos meus passos. Enquanto me lembrasse do meu nome pela voz da avó Lurdes, o meu caminho continuaria escrito nas linhas que cruzavam as palmas das minhas mãos.


