Autor(a):

alexandra ferreira
Alexandra Ferreira

Maria da Graça

«Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.»

Maria da Graça despertou com a voz melodiosa que se instalou insidiosamente na sua mente. Tentou abrir os olhos. Tentou mexer-se. Percebia palavras no burburinho: «camião… desfeito…».

«O que aconteceu?»

Fez nova tentativa para abrir os olhos, para se mexer. Não foi capaz.

«… choque frontal… prognóstico muito reservado…»

«Quem teve um acidente?»

E aquela voz «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.»

Recuou à mais tenra infância. Lembrou as brincadeiras na sacristia, às cavalitas do pároco. Ele ria e resfolegava, enquanto ela se escarranchava nas suas costas. «Anda cavalinho! Cavalinho anda!». E espicaçava-o com as suas perninhas curtas.

«Moraria ali? Que imagem tão estranha.»

As memórias desfilavam, agora ao colo do pároco, depois embrulhada na estola, debaixo da sotaina…

Vários apitos cortaram-lhe as divagações e mergulhou na inconsciência.

«Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.»

Um estilhaço de memória… o rosto vermelho do padre a arquejar no tapete felpudo… a mãe entrando na sala e gritando-lhe para sair…

«… sedativo… paz…»

«Paz? Filha! Filha! Onde está a minha filha?»

Debateu-se novamente para ver o que acontecia à sua volta, quis soerguer-se, mas o corpo não acompanhava a sua vontade. Estava emparedada no próprio corpo. Gritou, gritou, gritou, mas o eco ensurdecedor ressoava apenas na sua cabeça. Sem forças soçobrou.

«Tenho um chupa-chupa para ti, mas não podes contar à mãe. Queres?»

«Sim, senhor padre» —  repetiu, conforme ouvia a mãe dizer.

«É um segredo nosso. Não pode ser quebrado. Deus é testemunha.»

«Sim, senhor padre.»

«Está aqui no meu bolso. É muito grande. Vai dar para vários dias. Queres chupar?»

«Sim, senhor padre.»

«Vou segurá-lo na mão e deixo-te dar umas lambidelas.»

«Sim, senhor padre.»

Maria da Graça recorda o estranho chupa-chupa. Não era como os da venda, achatados e embrulhados em papel celofane. Aquele era cilíndrico, rosado, com um orifício na ponta e coberto de mel. Mas era doce e soube-lhe bem.

Um ruído de passos aproxima-se.

«Por hoje já chega. Amanhã deixo-te chupar mais.»

«Vamos, minha filha? Sua bênção, senhor padre!»

«Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.»

O ritual repetiu-se por anos e Maria da Graça espantava-se com a criatividade dos cenários que o padre montava para lhe satisfazer a gula: algumas vezes sentava-a no colo, outras pedia-lhe que se ajoelhasse, ou deitava-se no chão. Como prova de confiança, começou a deixar que ela agarrasse o chupa-chupa com as suas mãozinhas roliças, enquanto a incitava a esfregar a base para acentuar o sabor a fruta.

«… um mês… desligar as máquinas… paz…» 

«Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz»

«Estão a dar-me a extrema-unção?! Socorro! Eu estou viva! Senhor padre, salve-me!»

Maria da Graça cresceu. O seu corpo começou a ganhar formas voluptuosas. Era alvo dos desejos secretos dos rapazes da sua idade e também dos pais deles. Mas ela ignorava os olhares libidinosos, enquanto seguia para a casa do padre.

«Sua bênção, senhor padre!»

«Deus te abençoe, minha filha. Estive a pensar. Está na altura de tomares o corpo de Cristo.

«Como na missa?»

«Não. É uma cerimónia mais íntima em que o corpo do Senhor entra em ti para te santificar. No início, podes sentir desconforto e oferecer alguma resistência à penetração do espírito vivo no teu interior. Mas não temas, pois os prazeres da santificação ficarão inscritos na tua alma. Sentes-te preparada para esta bênção?»

«Sim, senhor padre.»

Subiram ao andar superior onde se despiram das roupas profanas. Sentou-a na tina de zinco e regou o seu corpo com água tépida que cheirava a alfazema e alecrim. Ensaboou-lhe delicadamente cada centímetro de pele, detendo-se nas zonas protuberantes. Lavou-lhe e penteou-lhe os longos cabelos pretos. Embrulhou-a na toalha de linho.

«Estás pronta, Maria da Graça. Vem.»

Conduziu-a ao quarto e convidou-a a deitar na cama alva. Massajou-a, corpo a corpo, com óleos santos, enquanto lhe sussurrava palavras de elevação e de abertura ao sagrado que iria passar a habitar no seu interior.

Maria da Graça entregava-se à cerimónia e sentia os pensamentos clamarem para que o Senhor a tomasse e a fizesse sentir una com o Criador.

«Corpo de Cristo», ouviu-o dizer, enquanto uma onda de prazer a sacudiu.

«Toma o corpo de Cristo, Maria da Graça!», e ela colava-se a ele, sentindo-o agigantar-se dentro de si, ternamente, deixando-a gozar a plenitude da comunhão. Perdeu a noção das vezes que procurou e se deixou tomar pelo corpo de Cristo, repetindo o êxtase. 

Exausta, adormeceu embalada pelas palavras familiares «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz».

«Agarra-te à vida, Maria da Graça. O Senhor ainda não te chama. Preciso de ti para continuar a cumprir a minha missão aqui na terra, trazendo paz aos homens de boa vontade.»

«Mãe, preciso de ti. Não me abandones!»

Maria da Graça estremeceu. Ali estavam as duas pessoas que mais amava no mundo, pedindo-lhe para ficar. Precisava de lutar para afastar aquela atração de se unir ao Divino Criador, tinha de lhes dar um sinal de que estava viva. O período da dúvida acabara e ela estava a voltar para casa, para a sua Maria da Paz e para o amor do senhor padre, quando fora encandeada pelas luzes do camião.

«Paz! Corpo de Cristo!», murmurou, antes de regressar à inconsciência.

Maria da Graça - Alexandra Ferreira
Partilhe:
AUTOR(A)
alexandra ferreira
Alexandra Ferreira

Alexandra Ferreira, natural de Coimbra, reside em Leiria.

Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Além de se dedicar ao ensino, é também dirigente espiritual de um terreiro de Umbanda e presidente de uma associação de solidariedade social.

No âmbito da sua paixão pela escrita e pela comunicação, integra coletivos femininos literários do Mulherio das Letras, a comunidade de Nardele Gomes, a comunidade de WRITERS de Analita Alves dos Santos e o Clube de Leitura «Encontros Literários O Prazer da Escrita». Participou em várias coletâneas promovidas pela In-Finita e na antologia «Cantamos Todas Nós». É autora do livro Rumo ao Topo – É lá que nos vamos encontrar (2022).

MAIS ARTIGOS