Às dez horas em ponto, Abel entra no café «Princesa» na Avenida da Liberdade. Vai encontrar-se com uma mulher desconhecida, que telefonou no dia anterior. Neste local repleto de clientes, passarão despercebidos. A discrição é determinante para o sucesso das ações que realiza, nada é deixado ao acaso.
O bulício dos empregados abafa as conversas:
─ Duas bicas para as senhoras. Uma cheia!
─ Um garoto e uma torrada para a mesa do canto.
─ Um croissant e um sumo de laranja para o camone do fundo.
Turistas e portugueses misturam-se numa babel lisboeta.
Senta-se num dos cantos da sala e aguarda a misteriosa cliente, que apenas conhece pela voz rouca. Abel gosta de ser o primeiro a chegar, para observar o perfil de quem o contrata.
─ Bom dia, senhor.
A mulher é exatamente como se descreveu: cabelo castanho pelos ombros, lábios pintados de vermelho e um sinal ao canto da boca. Usa calças de ganga e, a cobrir os ombros, um casaco de pele de vison de boa imitação.
─ Por favor, sente-se ─ diz Abel, puxando a cadeira.
─ Obrigada. Eu sou a…
Abel interrompe-a repentinamente.
─ Não quero nomes. Apenas me interessam os detalhes da missão.
A enigmática cliente deixa Abel perturbado com os seus lábios vermelhos provocadores.
─ Muito bem. Dentro deste jornal tem um envelope fechado com uma foto, a descrição dos hábitos do alvo e o pagamento acordado. Tem de ser hoje!
Abel sente um arrepio inquietante quando ela coloca a mão em cima da sua e larga vagarosamente o jornal dobrado, em cima da mesa.
─ Não se preocupe, a missão será cumprida!
Levanta-se num impulso e, sem se despedir, abandona o local. Abel observa-a caminhando entre as mesas, sentindo uma mistura de excitação e desconforto. Os olhos seguem cada movimento, enquanto ela se afasta, e sente o coração acelerar com a adrenalina que o impulsiona para a ação. É homem que vive nas sombras, porém não se deixa intimidar. Um verdadeiro profissional nunca desiste. Com determinação, levanta-se, paga a conta, sai do café «Princesa» e dirige-se para o metropolitano.
Às onze horas e trinta e cinco minutos Abel sai do metro, na estação do Saldanha, e caminha ao longo da Avenida da Républica. Um sentimento de incerteza invade-o ao contemplar as montras, enquanto avança em direção ao Campo Pequeno. Entende a necessidade imperativa de se manter vigilante, nunca permitindo que a atenção vacile, especialmente quando a tarefa em questão é tão delicada.
Entra no Centro Comercial e desloca-se até à zona dos restaurantes. Àquela hora, começam a chegar os clientes para o almoço e depressa ocupam todas as mesas. Escolhe o restaurante japonês, situado num recanto discreto do espaço. Saborear os pequenos pedaços de sushi com pauzinhos permite-lhe alinhar os pensamentos e ajuda a concentrar-se.
Abel olha mais uma vez para a fotografia dentro do envelope e revê mentalmente todos os pormenores do plano, procurando algum erro. A tensão aumenta à medida que a hora de agir se aproxima.
Regressa ao apartamento que ocupa na Avenida de Paris. A energia já começa a faltar, o descanso a meio do dia é fundamental para que o corpo recupere. Enquanto se prepara para a missão, tenta afastar os pensamentos que fogem para a mulher que o contratou, mas é difícil. Ainda sente o toque suave da mão dela e o aroma do seu perfume.
Às dezassete horas e quinze minutos, sai do prédio.
─ Boa tarde, senhor Abel. Hoje não leva o cãozinho a passear? ─ cumprimenta a vizinha do segundo esquerdo, com simpatia.
─ Boa tarde, dona Ana. Já o levei a passear à hora de almoço. Hoje saio mais tarde, mas se precisar que a ajude nas compras, podemos combinar para amanhã de manhã.
─ Obrigada, senhor Abel. O que seria de mim sem a sua ajuda. Até amanhã!
Tem o tempo necessário para chegar às dezassete horas e cinquenta e cinco minutos à estação de metro da Baixa-Chiado, uma das mais concorridas. Às dezoito horas exatas tem de estar na plataforma.
Abel vê-o chegar… alto, de olhar sobranceiro, blusão de pele castanha, cabelo preto penteado para trás.
Com uma pasta de computador na mão e um olhar alheado, Pedro não repara em ninguém. Cada passo que dá ao longo da plataforma é como se fosse o último. Sente o estômago embrulhado. O seu pensamento está no quarto de hotel onde supõe que a mulher que o enlouqueceu o aguarda. Olha para o relógio várias vezes. Sente o coração bater mais forte do que nunca e a mente aprisionada pela decisão que tomou. Hoje está determinado a pôr fim àquela obsessão perigosa. Nunca se cativara por uma cliente, a sua função é o prazer que lhes concede. Pode ser a última oportunidade de estar com ela e, ao mesmo tempo, pode ser o final de tudo.
A cicatriz no lábio superior confirma que ele é o homem da fotografia. A missão intrigante que Abel tem de executar.
A plataforma é tomada por uma enchente de pessoas que surge de todos os lados. O tumulto das vozes e o som dos alto-falantes geram um burburinho e uma agitação emocionantes. À medida que as carruagens emergem do túnel escuro e se aproximam com um rugido, a multidão comprime-se ao longo da linha amarela. Embora o aviso para se afastarem seja audível, durante o horário de ponta, a aglomeração intensifica-se.
Abel não perde de vista «o seu homem». Posiciona-se atrás dele, sentindo-se apertado e empurrado pela multidão. Com destreza, equilibra-se e desliza a mão esquerda para dentro do bolso do casaco. Com a luva calçada, segura a arma com firmeza, mantendo o dedo no gatilho, e com discrição pressiona-a nas costas do alvo. Ninguém percebe, exceto Pedro, que fica paralisado. Sem hesitar, Abel dispara e a bala penetra silenciosamente no corpo indefeso. A multidão move-se como um organismo vivo, arrastando Abel para o interior da carruagem. Abre a mão e a pistola desliza para o forro do casaco, através do bolso que descosera.
As portas fecham-se e o comboio arranca. Na pedra fria da plataforma, jaz um homem.
Abel sai do metro na estação do Cais Sodré e senta-se numa esplanada. Coloca o saco do tabaco de cachimbo e as luvas em cima da mesa. Pede um whisky. Vai bebendo pequenos golos enquanto observa os barcos que atravessam o rio, contudo, não retira os óculos escuros. Ninguém se pode aperceber das emoções que o dominam, o sangue-frio de outrora já desaparecera.
Indiferente ao que o rodeia, continua a observar o movimento do Tejo, enquanto fuma o cachimbo que o tem acompanhado ao longo da vida e reflete sobre as missões que cumpriu.
Hoje foi diferente. Aquela mulher provocara emoções que nunca sentira por uma cliente. Sempre soubera separar a vida privada da profissional, mas o mistério e a frieza da mulher que o contratara para matar o amante intrigara-o. O olhar frio penetrara-lhe a alma, fazendo-o sentir-se vulnerável, pela primeira vez em muito tempo. Nunca questionara as motivações dos clientes. Cumprira a missão, mas cada palavra dela foram setas afiadas em direção ao coração, abalando a sua determinação e fazendo-o questionar-se.
Coloca o boné e o cachecol, que o protegem do frio e dos olhares curiosos. Encolhe os ombros e pensa consigo mesmo: «Já não tens idade para isto!»


