Nero. De pelo brilhante, preto, que espelhava uma luz que incidia no dorso forte e musculado. O tamanho conferia-lhe uma forma atrapalhada de andar parecendo encher todos os lugares e a proeza de deitar ao chão as loiças da casa. Dócil companheiro, cheirou as minhas fraldas e, mais tarde, as minhas ceroulas, voluntariamente impregnadas no seu faro. Se alguma vez fosse necessário encontrar-me, bastaria seguirem Nero e ele indicaria a minha localização, mesmo do outro lado do mundo. No entanto, se eu me perdesse ou fugisse para longe, ele estaria comigo, não havendo ninguém mais para seguir meu rasto.
Fixado por galinhas, Nero perseguia-as de forma compulsiva, único momento em que se distanciava de mim, para roubar a pouca paciência dos galináceos e algumas penas, armando confusão na capoeira. Até os galos fanfarrões perdiam as peneiras e altivez e fugiam esganiçados, atrevo-me mesmo a dizer, “esgalinhaçados”. À conta das corridas de Nero, as galinhas perdiam o respeito pelos galos vaidosos e já não bastava um simples arrastar de asa, a dança era paulatinamente mais pomposa e demorada. Escusado será dizer que as galinhas, mas principalmente os galos, que tivemos ao longo dos anos, odiavam Nero, pois ele perseguia-os até ao dia fatal da panela. Alguns não duravam, sucumbindo às abocanhadas exercidas sem noção da sua imensa força, e largando-os, de seguida, sem interesse, perante a ausência de esperneio ou agitação.
Dia após dia, o meu pai saturava-se com aquele comportamento temperamental, entre touro e bicho de pelúcia, e castigava-o. Pecado que lhe penava no corpo. Era acorrentado, para considerar melhor o que pretendia da vida canina: melhor comportamento e a minha companhia constante, ou as penugens pelo ar e a ausência do seu adorado humano, com a clausura de uma corrente agarrada ao cimento frio e duro. Enquanto Nero latia e uivava de incompreensão de tão vil tormento, eu chorava e perdia peso. Penava por ele e como ele. Nem só dos nossos pecados sentimos as consequências na pele, por vezes, os pecados dos outros, próximos de nós, marcam-nos de igual forma. De olhos caídos à mesa e o prato de comida intocado, o meu pai acabava por barafustar: – Raios partam o cão! Soltem-no, mas para a próxima não terá tanta sorte. E de sorte em sorte, como as pedras que vamos encontrando ao atravessar um riacho, fomos caminhando pela vida. Eu e o meu amigo.
Cresci com Nero a esperar-me ao fim do dia de aulas, por baixo da grande árvore de copa larga, na rua do passeio cor de barro, perpendicular à escola. Nenhum canino passava por ali sem pôr a cauda entre as pernas e seguir de mansinho. Nenhum o desafiava e nenhum menino se sentia mais amado que eu.
Acompanhava-me com o sol, com a chuva, com a lua, com o vento e com o orgulho de se saber ali comigo. Paciente com todas as minhas tarefas, ansioso por todos os passeios, os mergulhos no rio e as infindáveis procuras de pequenos troncos que eu conseguia, dia após dia, atirar mais longe.
Quando o superei em quilos de peso, Nero ia nos treze anos de vida, mas, ainda assim, com mais força do que eu. Possante e a destinar cada vez mais horas do dia ao descanso em alta e ronca voz, não perdia as minhas rotinas, as nossas brincadeiras e as horas de molenguice na rede que dormia na sombra das duas melhores árvores do nosso quintal.
Mas, um dia, a confusão no galinheiro superou-se em penugens pelo ar e o cacarejar desesperado ouvia-se ao pé do sino da igreja, em pleno toque das seis da tarde. Corri para chamar Nero à razão, com medo na voz, imaginando o castigo que nos calharia desta vez. Encontrei o meu pai com dois dos seus empregados com paus nas mãos. Tentavam encurralar Nero num beco, que, pelo olhar de meu pai, não teria saída. Percebi a razão daquele olhar assim que vi Nero a espumar da boca e sem reagir aos meus gritos pelo seu nome. Já tinha ouvido falar daquela doença, que bramia loucura pelos olhos e boca e a fatalidade de não se reconhecer quem sempre se amou. Adoeci naquele momento. Antevi a sorte a escapar-lhe. A pedra do riacho estava longe demais para alcançar, mesmo com o salto mais diligente…
Naquela altura, quando se apanhava piolhos, rapava-se por completo o cabelo, menino ou menina, sem contemplações, para além do uso de alguma mistela com efeitos secundários duvidosos e sempre malcheirosa. A natureza ditava os anos de vida, sem a ciência para desafiar o tempo e quando desafiava era longe dali, demorava-se a chegar.
Nero tinha tudo contra ele. Naquele beco onde perseguiu a sua última galinha, incapaz de conter o seu impulso, e aguçado pela violenta doença que se lhe abateu sem dó, caiu, pelas mãos calejadas de certeza de que tal infortúnio não podia alastrar a outros. Morreu ali. Nunca um som se colou a uma imagem como naquele momento. Não sei qual foi a imagem a seguir, bloqueei a derradeira, e caí também eu, desfalecido no chão.
Acordei sem noção dos dias, com o cantar dos galos mais intenso e cheio de pompa. A natureza seguia o curso e eu prossegui o meu.
Os ovos das galinhas passaram a ser maiores e mais regulares, menos penas pelo ar e confusão no galinheiro, mas os dias desacompanharam-se de amor e alegria, e assim foi por muito tempo.
Nero marcou-me na vida que percorreu comigo, e na forma abrupta como a morte o apanhou desvacinado. Devo-lhe o amor pelos animais e a minha profissão, veterinário. A ciência tem na minha vida um papel ativo e mistura-se na equação em que o tempo e tudo o que o envolve combinam e mexem com as pedras que nos vão, ou não surgindo à frente.
Lembrei-me do meu cão Nero enquanto esperava na fila da farmácia, pensando que, hoje, o meu filho de sete anos não teria de passar por um episódio semelhante com o nosso cão… – Um champô para matar piolhos, com cheiro a cítricos, por favor!


