Autor(a):

Paula Eduarda Figueiredo
Saltando do Parêntesis

O «achievement» está «overrated»

«Ilusão! Pura ilusão! Tudo é uma ilusão […] Ninguém se satisfaz com aquilo que os seus olhos veem, nem com aquilo que os seus ouvidos ouvem.» (Eclesiastes, 1, 2-3, 11-14)[1].

Escrevo no rescaldo da publicação dos «rankings» das escolas de 2024, quando docentes e diretores de estabelecimentos de ensino, jornalistas e políticos – no ativo ou em pousio –, comentadores de quadrantes diversos, discípulos de Pilatos e almas

bem-intencionadas peroram sobre classificações de exames, contextos escolares e taxas de sucesso.

O êxito goza de boa reputação e de célere aplauso, multiplicados e amplificados pela omnipresente Comunicação Social e pelas tentaculares redes sociais. E, todavia, a condição do Homem, por si só, é a do «in fieri».

Quem não se sente maravilhado ao contemplar as Capelas Imperfeitas, no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, e ao ouvir a sua dramática história?

Deixamos de desfrutar dos dois andamentos da «Sinfonia n.º 8» de Franz Schubert porque estará porventura inacabada?

Almas Mortas perde o seu fascínio satírico porque Nikolai Gógol deixou o romance incompleto?

A escultura inacabada «Pièta Rondanini», de Miguel Ângelo, não é considerada por muitos como o seu «testamento espiritual»?

Não seria difícil multiplicar os exemplos de incompletudes transbordantes, para além da Arquitetura, da Música, da Literatura e da Escultura.

Dispomos, atualmente, de uma ferramenta digital absolutamente extraordinária: a Inteligência Artificial (IA). As suas funcionalidades são inegáveis e transformadoras, em vários domínios. Mas, no que diz respeito à inteligência emocional e criativa, isto é, àquilo que nos é intrínseco, a nós, pessoas de carne, ossos e sentimentos, pode a IA substituir-se ao Homem?

Em 2021, soubemos que a 1.ª Sinfonia de Ludwig van Beethoven, apenas esboçada pelo genial músico, tinha sido completada por musicólogos, com recurso à IA.

Este ano mesmo, 700 anos volvidos sobre a morte do Rei D. Dinis, a evolução tecnológica permitiu fazer a reconstituição do seu rosto, em impressão 3D, exposta na Sala do Exame Privado da Universidade de Coimbra.

Escolas e universidades confrontam-se com a colonização dos trabalhos académicos pelas ferramentas digitais que, «à la carte», regurgitam textos prontos a submeter ao crivo docente.

E o que dizer da síndrome da página em branco, que acometia quem se lançava na aventura da escrita? Com a IA, será provável que entre em extinção, uma vez que pode ser usada como gatilho para desbloquear escritores.

O número de visualizações e de «likes» dita a fortuna e o estatuto social de «influencers», que parecem estar a substituir, em ritmo acelerado, os vultos de inegável craveira intelectual e moral que, não há tanto tempo assim, eram apresentados como exemplo para emulação.

Os fracassos tornaram-se «inconseguimentos» e as mentiras, «inverdades». Os factos são «perceções» e os valores contornáveis.

Classificações escolares de excelência. Emprego leve e bem remunerado. Vidas perfeitas expostas nas redes. Sinais exteriores de riqueza e de triunfo. Vias rápidas para concretizar sonhos… Um carrossel interminável. Não estaremos a aceitar sucedâneos de felicidade, vitórias pírricas que acabam por ter o sabor amargo do vazio?

Fracasso. Recomeço. Fragilidade. Resiliência. Humildade. Cooperação. Interioridade. Integridade… A sua cotação na bolsa dos valores revela um lado menos solar dos nossos dias.

Nascemos inacabados, a mais indefesa das crias sobre o planeta. Crescemos à procura da outra metade da laranja. Olhamos a vida como um caminho. Um trajeto. Um percurso. Uma peregrinação. Uma etapa… Não importa a metáfora, estamos em processo. Somos um processo. Intrinsecamente inacabados, trazendo em nós, perpétua, a ânsia da plenitude e da transcendência. Da beleza e da criatividade. Da autossuperação.

A consciência dessa condição convoca a humildade dos pequenos passos e a urgência de saborear cada segundo deste mistério que nos é dado viver.

De volta à casa de partida, creio que proporia, para estas linhas despretensiosas, um outro título, uma outra forma de viver: «A sedução da incompletude». Mais alguém?

«Neste mundo, tudo tem a sua hora; cada coisa tem o seu tempo próprio. […] (Eclesiastes, 3, 1-2)

[1] Este livro da Bíblia terá sido escrito no século IV ou no século III a. C.

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AUTOR(A)
Paula Eduarda Figueiredo

Paula Eduarda Moreira Figueiredo nasceu em Coimbra, em 1965, onde vive atualmente.

Estudou Línguas e Literaturas Modernas e Jornalismo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

É professora de Português e de Francês, desde 1987, no ensino não superior.

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