Autor(a):

Porventura Correia

O Amentador de Xendive

No segundo ano do curso de jornalismo, Lisboa, encetei o consolador sopro no cachimbo de arievilo. Não existia a voluptuosa Anieska nem a Serpente Verduga. A paixão habitava os montes cabreiros, nas cercanias de Pitões das Júnias, invisível a olhos humanos. Para poupar dinheiro, retornava à casa familiar a cada dois meses, e sempre ansiava pela amiga Usaganha nos recantos húmidos da serrania.

Chegado a casa, cumprimentados progenitores e resumida a vida lisboeta, descalcei as botas e deitei cascos ao caminho, em veloz corrida de pé-de-cabra. Perto do sítio costumeiro, urros espantavam maruxinhos, que debandavam na minha direção. Um deles apelou à cautela e avisou-me que a Grande Usa estava enlouquecida. Ainda assim, avancei. Achei-a, pelagem esmeralda, grande como um castanheiro, debruçada sobre a filha, a minha amiga Usaganha. Rosnou quando me viu, ameaçadora como um Titã antigo, mas logo me reconheceu e consentiu a aproximação.

Temi o pior, mas compreendi que a Usaganha respirava, porém os olhos pintavam-se de cal branca. Sem palavras, a Usa reportou-me o sucedido: o Amentador de Xendive tentara dominar a vontade da filha e quase o alcançara, não fosse ela chegar no momento certo e sobre ele lançar poderosos feitiços. O bruxo retirou-se para lá da fronteira, mas a pobre ficara naquele estado vegetativo, nem possuída nem vivente. A Usa gastara os poderes para reverter os malefícios do celerado, contudo nada conseguira. Só o próprio poderia desfazer o mal, ou morrendo o malfeitor morria o mal.

Corri ao conselho da minha mãe e ela, impotente, alvitrou recorrer ao Careto de Pitões, o único na região que se elevava a par do Amentador. Para um pé-de-cabra como eu, ligeiro e farejador, não foi difícil alcançá-lo, pelas bandas da cascata. Montava o Touro de Miranda, tão amplos os cornos que as pontas se afastavam seis braçadas, tão alto que media três de mim até à garupa. Ambos mascarados e ataviados de muitos guizos, chocalhos e borlas de lã colorida. De nada valeu a corrida. O insigne defensor da sobrenaturalidade da região, alegou não ter autoridade para atravessar a fronteira, imposição de convénios seculares.

Ante a insistência e reconhecendo o abuso do ataque contra a filha da Usa, soberana naquelas terras, arrancou um guizo metálico, amassou-o na mão e juntou aparas do chifre do Touro, raspadas a facalhão. Entre dedos surgiu uma bala cintilante. “É tua!”, ofertou-ma a voz enrugada.

Dia seguinte, alvorada, os meus cascos chisparam nas na terra e pedras. A tiracolo a espingarda. Fronteira atravessada. Araúxo, Prancibe, Reguengo, Siugrexa e, finalmente, Xendive. Meio-dia. A casa isolada emanava um zunido putrefacto. Na cavalariça resfolegava o Unicórnio Negro, montada alada que permitia chegadas e saídas rápidas pelas serras. Um homem todo de couro negro, capuz do albornoz pela cabeça, sai pela porta da frente e um estouro seco fende o ar do bosque.

Imagem Gerada Artificialmente e tratada digitalmente

Partilhe:
AUTOR(A)
Porventura Correia
MAIS ARTIGOS