Autor(a):

Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho
Per ficta resistire

O Artista do Inacabado

Qualquer família pobre pode ser rica à sua maneira. Há beleza na partilha de uma lata de sardinha e de um pedaço de pão. Pode existir alegria nos copos de barro cheios de chuva.

Os infantes, capazes de perceber uma brincadeira alumiada pela lamparina de petróleo, corriam e cada um deles intitulava-se um animal. Olha mãe, e veio a gaivota e picou-lhe as orelhas e com os dedinhos em forma de pinça, pinicava as orelhas do pai debaixo de falsos protestos. Seguiam-se os outros. Sou uma mosca e pouso na bochecha do pai. E eu uma pulga, salto-lhe do pescoço para as costas. E continuavam derretidos na paródia, enquanto a humidade lhes roía os tornozelos nus.

Maria não era Cleópatra, mas a pobreza não ofusca o caráter, nem se é plebeu numa família onde se é rainha, por mais desprovida que possa parecer. Joaquín era pastor durante o dia e Maria a guardiã dos filhos. À noite eram artistas, ou assim gostariam de ter sido. Talhavam animais em pequenos pedaços de madeira, pendentes para pulseiras com formato de flores para as mulheres e de ursos para os homens. Sempre que possível, Maria ia até ao mercado da cidade, com um avental fechado em triângulo, e dispunha as peças como relíquias em exibição.

Luiz era o filho mais velho de Maria e de Joaquín. Cuidava dos irmãos quando os pais não estavam. Muitas noites, fingia dormir e quando a respiração dos pais e dos irmãos se limitava a pequenos silvos entre amoras, levantava-se e corria até um casebre abandonado, localizado a um quilómetro de casa. Ali, esculpia estátuas sem rosto, pintava em pedras árvores sem folhas, florestas com arbustos pela metade, flores sem caule, suspensas no ar à espera de algo a que se agarrarem.

Revezavam-na os filhos, que ordeiramente substituíam as carícias da mãe no rosto do pai, o sopro para aliviar o calor. Naqueles dias o silêncio retesava-lhes a pele. Tornou-se tão seco como as vagens de favas que mirravam na horta à espera de serem apanhadas e tão amarelo quanto as folhas das couves abandonadas nas traseiras da casa. Luiz esperou para fugir durante a noite. O pai ensinara-o a ler e a escrever. Num pedaço de papel, que rasgou do caderno de um dos irmãos, escreveu: «Querido pai, eu volto. Espera por mim». Partiu. Levou com ele a caixa de madeira que os pais usavam para guardar as batatas e as cebolas, dirigiu-se ao casebre e encheu-a com as obras inacabadas. Ao amanhecer, já estava na cidade.  Tudo lhe parecia exato e ordenado. Foi o primeiro a chegar ao mercado; plantou-se mesmo em frente ao hospital.

Precisava de dinheiro para contratar um médico. No início espelhava esperança. Porém, as gentes zombavam dele e das peças artísticas sem conclusão. Disfarçou as lágrimas que teimavam em correr, enquanto as pessoas passavam insensíveis à arte.

— Ó jovem, está a vender obras por terminar? A arte exige conclusão! Que ridículo!

Luiz primeiro chorou, depois viu o pai aparecer-lhe no ardor que lhe atravessava a garganta. Lembrou-se das graçolas que ele criava para ver a família feliz. «Nada é permanente neste mundo cruel, nem mesmo os nossos problemas», dizia-lhes citando o seu maior ídolo, Chaplin. Esperançou-se. Voltou a murmurar entre dentes a frase. Uma, duas, três vezes.

Um homem aproximou-se da improvisada banca.

— Não devia estar a vender as obras por terminar. Acha que alguém lhe comprará alguma coisa?

— A beleza mora no que poderia ser.

O homem focou uma escultura com metade de um sorriso. Fechou os olhos, e sorriu. Observou uma tábua de madeira com um farol numa ilha e uma tempestade interrompida, voltou a entrar dentro dele e imaginou o vento forte levantar as ondas. No silêncio dos inacabados, criou aquilo que só ele poderia criar. O trabalho de Luiz deixava espaço para que cada olhar terminasse a obra guiado pelo coração.

— Genial… és um grande artista.

— Não sou artista, senhor. Sou um filho que quer salvar o pai. Preciso de contratar um médico. Vai levar alguma peça?

— Não. Tu é que me vais levar a ver o teu pai. Sabes, eu sou médico, e fizeste-me ver de que nada é mais perfeito do que aquilo que ainda pode ser.

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Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho nasce no ano de 1980, em Lisboa, é a quarta geração a residir numa vila Lisboeta por onde tantos escritores já passaram. Licenciou-se em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada em 2004, tendo posteriormente completado uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos.

É casada e mãe de dois filhos. Da sua família sacia o amor, a união e a força para os seus projetos.

É nas páginas dos livros que encontra refúgio e será através das suas palavras que procurará deixar um legado. Conta com a participação em várias coletâneas e revistas digitais, enquanto contista. É co-fundadora do podcast «Livros a três» e desenvolve um papel ativo em projetos de formação de Escrita Criativa e na divulgação da importância da leitura.

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