Se acham que conhecem esta história, estão completamente enganados.
Saibam que, por estar exausta de ser rotulada como vilã, tomei a decisão de demostrar o contrário. Um dia, estava num desses livros que contam a tal história da raposa e da cegonha — não acredito que não a conheçam —, quando uma criança lhe pegou. Deixou-o aberto em cima de uma mesa onde havia outro livro que tinha uma fada na capa. Isso deu-me uma ideia.
— Quem me dera sair daqui para fora, nem que fosse para provar que não sou assim tão má! — resmunguei, sem ter a certeza de que a fada iria ligar ao que eu dizia.
— Raposa, raposinha. Posso conceder-te um desejo. Ou dois. Vamos lá, no máximo… logo se vê.
Nem podia acreditar no que os meus olhos viam: Primavera, saída diretamente das páginas da história da Bela Adormecida, estava ali, bem diante de mim. Mal consegui disfarçar o tremor da voz quando lhe disse:
— Verdade? Fazes isso por mim? Prometo que não te vou desapontar.
— Ora, ora! Não digas mais nada. Queres sair do livro, não é? Ficas a saber que o teu primeiro desejo irá realizar-se. Os seguintes, serão surpresa.
Não sei como é que ela fez, mas, numa fração de segundo, eu estava em cima da mesa. Saltei para vários lugares, feliz por ter essa liberdade. Sabia muito bem quais eram os meus outros desejos. Então disse logo:
— Primavera, quero voltar à minha casa da floresta e fazer um jantar muito especial para a cegonha.
— Muito bem, os teus desejos serão concedidos. Mas, antes da meia-noite terás de ter tudo terminado, pois precisas de voltar ao livro onde estavas.
Não fiquei assim muito contente, uma vez que gostaria de sair daquela história para sempre, mas pronto, as fadas lá sabem.
Daí a pouco, encontrava-me na floresta. Era meio da tarde. Vi logo a minha casa, tal como no livro. Estava tudo limpo e arrumado. Queria convidar a cegonha para jantar. Mas, daquela vez, tudo iria correr bem. Segundo as minhas contas, teria cerca de quatro horas para voltar. A despensa estava cheia. Que maravilha! Abri todos os armários.
Como pude esquecer que só tenho pratos rasos em casa? Bom, vou pôr uma sopa a fazer e, antes de convidar a cegonha, vou arranjar uns jarros especiais para que ela possa comer, pensei.
Daí a meia hora, já se sentia o cheirinho maravilhoso da sopa que fumegava ao lume. Saí e fui bater às portas das casas dos meus vizinhos. Riram no meu focinho, quando lhes disse que estava à procura de um ‘prato’ especial para a cegonha. O texugo Peludão, sempre zangado com a vida, até me perguntou, entre risadas trocistas:
— Estás com febre ou quê? Tens a certeza de que não foste obrigada a dizer isso?
Nem lhe respondi. O certo é que não tive sorte nenhuma. Ninguém me ajudou. Nisto, avistei a cegonha e, claro, não podia perder a oportunidade de convidá-la para jantar.
— Boa tarde, comadre cegonha. Gostaria muito de ter a sua companhia para jantar ainda hoje.
— Que gentileza, raposa. Já há muito tempo que não a via. Terei muito gosto. Precisa que eu leve alguma coisa?
Ainda fiquei a pensar se seria melhor aceitar, mas respondi:
— Não se incomode, não precisa de levar nada. Espero por si daqui por uma hora?
Quando disse isso, quase me arrependi: primeiro, por não pedir que ela trouxesse um prato dela; segundo, por não aceitar alguma comida. Não, isso não fazia sentido.
O tempo passava depressa e eu cheia de nervos. Até que tropecei num pequeno tronco de madeira oco. Hum, podia fazer uma espécie de jarra, pensei. Mas, infelizmente, tinha um furo na base, então não servia. Mais adiante, encontrei um copo de plástico um pouco amolgado, dentro de um saco também de plástico. Fiquei triste por saber que deixavam lixo na floresta, mas até pensei que, naquela ocasião, o copo daria jeito. Mal lhe peguei, vi que tinha um corte num dos lados. Também não o poderia usar.
Resignada, voltei para casa, até porque se estava a aproximar a hora do jantar combinado com a cegonha. Além disso, eu teria de voltar ao livro. Ai! Ai!
Resolvi dar mais uma volta aos armários e às gavetas. Encontrei uma palhinha de metal. Não me lembrava de a ter visto antes. Pensei na fada. Só poderia ter sido ela, claro. Fiquei feliz e pensei que essa seria a solução. A cegonha conseguiria comer, melhor, beber, pela palhinha, não me restavam dúvidas.
Faltava meia hora para a cegonha chegar. Pus a mesa. Até coloquei uma jarra de flores no meio e uma vela. Estava bonita! De repente, bateram à porta. Seria a cegonha a chegar mais cedo? Pelo menos estava tudo pronto.
— Boa tarde, comadre raposa. Já há muito tempo que não a via por aqui. Até tinha saudades suas. Lembra-se de irmos à pesca juntas?
— Que surpresa, comadre Raposa Vermelha! — Era assim que tratava a minha amiga raposa, por ser madrinha dos filhotes dela. — Também estou feliz por vê-la. Se me lembro das nossas pescarias!
— Hoje estive toda a tarde a pescar e apanhei bastante peixe. Quando soube que estava por cá, lembrei-me de lhe trazer algum.
— A sério? Retiro o que disse! Não é uma boa surpresa, é maravilhosa!
Dei um grande abraço à minha comadre. Um milagre daqueles era mais do que eu podia imaginar! Era muito mais do que um desejo. Sabia que a cegonha gostava de peixe e esse, podia comê-lo do prato! Lembrei-me de novo da fada e até posso jurar que vi umas estrelinhas no ar.
— Desculpe, comadre, estou com pressa, porque os meus filhotes estão à minha espera. Venha visitar-nos.
— Só estou de passagem — disse eu rapidamente. Não sei se ela ouviu, pois já ia a correr para o seu destino.
Fui colocar o peixe na mesa. Estava muito feliz! Era mesmo uma coisa de contos de fadas! Daí a pouco, chegou a cegonha. Que linda vinha e bem-disposta!
Só posso dizer que adorou o jantar. Comeu peixe e até conseguiu “beber” a sopa, graças à ajuda da palhinha de metal. Conversámos e rimos. Ninguém ficou com fome. No final, convidou-me para jantar em casa dela. Disse-lhe que estava de passagem e combinámos que, quando eu voltasse (isto é, tinha esperança de que a fada me concedesse mais desejos), entraria em contacto com ela. O certo é que fiquei com curiosidade em saber como é que ela iria retribuir. Seria ela a má da fita desta vez? Até agora, não sei.
Bom, quem se lembra da história da Cinderela, por exemplo, sabe como é que as fadas concedem os desejos e as condições a obedecer. Portanto, mal consegui tempo para pedir que alguém reescrevesse a história da Raposa e da Cegonha como a contei, para que eu não fosse a vilã nessa narrativa. É que, mesmo antes da meia-noite, estava de volta à mesa onde tudo começara. O resto, podem imaginar.


