Autor(a):

Ana Costa
Ana Costa

Ó Malhão, Malhão

No outro dia encontrei o Malhão. Não conheces o Malhão?! Aquele que passa a vida a comer, a beber e a passear na rua. Deves ser a única pessoa que não o conhece, ainda mais agora, depois daquilo…

Sabes o que se passou? Não sabes? Eu também não sabia, mas, agora, vou contar-te tudo, tal e qual como ele me contou.

Então, cá vai!

Andava o Malhão num bailarico, onde toda a gente dançava, principalmente as crianças, quando tudo aconteceu. Olha, até estava lá a Rosa a arredondar a saia e tudo. E a roda que ela tinha, olá se tinha. Pois, como estava a dizer, o Malhão andava por lá e, quando chegou a sua vez de subir ao palco, não tinha bombo para tocar. Ora, como toda a gente sabe, a música dele é “Ó Malhão, Malhão, PUM, PUM, PUM” e vai-se a ver, não havia PUM, PUM, PUM. Não podia ser, não era a mesma coisa, por isso, ninguém quis ouvir o Malhão e ele foi expulso da festa, porque não era daquilo que estavam à espera.

Aquilo foi uma humilhação muito grande para ele, onde já se viu? Tinha atuado milhares de vezes, era famoso desde o primeiro dia, reconhecido em qualquer lado e só porque o bombo desaparecera mandaram-no embora? Ele ainda insistira para que toda a gente batesse palmas a acompanhar e ficava o assunto resolvido, mas não, disseram mesmo que não. O Malhão estava furioso, no entanto, não lhe serviu de nada.

No dia seguinte, foi logo de manhãzinha à loja do Mestre André. Precisava de comprar um bombo, que na hora de tocar estivesse sempre consigo. Mal entrou, Mestre André deu-lhe um grande abraço. Já sabia o que acontecera. Pois é, as notícias correm depressa e aquela tinha asas, pelos vistos. Comprou um bombo de última geração, pintado de vermelho e branco. Deu até para instalar um sistema de GPS, assim, saberia sempre onde andava e não corria o risco de o perder na hora de tocar.

Estava pronto para o espetáculo seguinte que, no entanto, foi cancelado, assim como todos os outros agendados. Nem podia acreditar no que estava a acontecer. A sua carreira parecia condenada a terminar. Deixou de receber convites e por onde passava só ouvia: “Agora é que passeias na rua, mas sem comer nem beber!”, “Vai mas é atrás do bombo!” “Quem não olha pelo bombo, logo o perde!”. Aquilo estava a levá-lo à loucura. Foi então que decidiu: uma vez que o seu país não o queria, iria emigrar. Fez as malas, agarrou no bombo e pôs-se a andar, na esperança de que os estrangeiros o quisessem ouvir.

Quando chegou a Espanha, bateu a várias portas à procura de trabalho, mas ninguém queria saber de música portuguesa. Teve de aprender a tocar a “Macarena”. Sempre que cantava em espanhol, sentia-se mal, por isso, passado algum tempo, viajou para França. Os franceses também não viam com bons olhos, que é como quem diz não ouviam com bons ouvidos, aquela música portuguesa e lá teve ele de cantar “Frère Jacques” e quase adormecia por não estar habituado a ritmos lentos. Andava cada vez mais triste e o bombo quase se atirava ao rio Sena por falta de uso.

Como não há duas sem três, o Malhão resolveu ir mais longe e foi para a China. Mas a língua era um grande problema, não havia maneira de falar chinês e não conseguia aprender nenhuma música. Quase a desistir, inventou e não é que acertou? “Ó, mailiang mailiang, de shenghuó shi yang? De chihé, de chihé, ó, té li mu di mu shidai zou zai”. Os chineses adoraram aquela novidade, por ser um ritmo ao qual não estavam habituados. O Malhão andava feliz com a nova versão. Nunca pensara cantar a sua música em chinês, e ali estava ele de volta aos palcos. A língua podia ser outra, mas era e sempre seria o “Malhão”. Nem podia andar na rua, que aparecia logo um chinês a tirar fotografias. Até o bombo começou a ser convidado para entrevistas, quando lhe descobriram a etiqueta “Made in China”.

E o Malhão começou a sonhar. Havia muitos chineses que falavam inglês e como é a língua de comunicação internacional, arranjou logo a versão inglesa: “Oh mallion mallion, what life is yours? Eating and drinking, oh tririm-tim-tim, walking in the street.”

E não precisou de mais nada. A sua carreira mundial e poliglota estava lançada. Não demorou muito para que os franceses lhe suplicassem que cantasse “Oh malhion malhion, quelle est ta vie? Manger et boire, oh trrim-trim-trim, marcher dans la rue.”

E como os espanhóis não quiseram ficar para trás, não havia sítio onde não se ouvisse “Oh malhon malhon, que vida es la tuya? Comer y beber, oh trim-tim-tim, caminar en la calle.”

O Malhão era um sucesso mundial. Viajava muito para levar as diferentes versões da sua música, mas tanto tempo fora de Portugal deixou-o cheio de saudades. Sentia falta da sua língua. Já nem se lembrava da última vez que tinha ouvido falar o idioma de Camões, a não ser, claro, quando falava para si. Portanto, famoso e bem-sucedido, estava na hora de voltar. Os portugueses, orgulhosos, nem lhe pediram desculpa quando regressou, apenas disseram que tinha havido “falhas na comunicação” e trataram imediatamente de o contratar para uma tournée pelo país. Não lhe caiu bem aquela desculpa, logo ele, que era um entendido em línguas, mas estava feliz por voltar a cantar a sua versão original.

Foi num bailarico de verão que o encontrei, feliz da vida e a pensar pôr o pé na estrada, outra vez, com mais uma variante. Acredita que será um sucesso. Aonde irá ele?

Não contes a ninguém, mas ele segredou-me ao ouvido: “Alibabá, aba bali? Alamar i babar, ó trrim-tim-tim, almenar al dal”.

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Ana Costa
Ana Costa

Ana Costa é natural de Viseu. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas Variante Estudos Portugueses e Franceses pela FLUC, conta com mais de vinte anos de experiência no ensino. Apaixonada pela vida, pela natureza e pelo bem-estar físico, mental e espiritual, dedica-se há cerca de dez anos ao desenvolvimento pessoal e às terapias naturais. É mestre de Reiki e terapeuta/ monitora nível 1 de Chi Kung. Sempre acalentou o gosto pela escrita, publicando textos num jornal académico — Letrear — criado quando era estudante e em jornais escolares de várias escolas por onde passou. Em 2004, publicou em coautoria o livro As Faces Secretas das Palavras com a editora ASA. Em 2020, participou com um poema na Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Vol. XII – Entre o Sono e o Sonho da ChiadoBooks. Em 2021 participou com outro poema na coletânea Alma de Mar também da ChiadoBooks. Ainda neste ano, publicou o conto “Uma ponte para o passado” na coletânea Não vão os lobos voltar e o seu primeiro livro juvenil Mergulhos na maré vazia, ambos edição de autor. Está envolvida em vários projetos literários e dinamiza Oficinas de Escrita Criativa. Acredita na força da palavra escrita e no seu poder transformador.

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