Autor(a):

carla carmona
Carla Carmona

O pastor

Soa a meia-noite, com as badaladas trazidas pelas ondas da rádio, quando, de repente, o estralejar dos foguetes invade a calma. Segue-se o fogo colorido.

Todos estão felizes, abraçam-se, amam-se, renovam votos. Os mesmos de sempre. Prometem ser melhores, mais generosos. Mentira, não se tornam mais caridosos, não mudam.

Norberto manteve-se à janela a olhar o fogo de artifício. Levou aos lábios a caneca com chá. Frio. Suspirou como quem fuma. Decidiu deitar-se, que a manhã traria, bem cedo, mais um dia de trabalho. Para as ovelhas não havia feriados.

O novo ano começava frio. No curral reparou que a coberta estava noutro sítio e parecia tapar algo. Aproximou-se e viu cabelo. Era de uma mulher jovem. Dormia. Colocou-lhe a mão no ombro e abanou-a.

— Senhora, o que está aqui a fazer?

— Desculpa. Perdi-me e não sabia para aonde ir. Estava frio e vi o curral, pensei que os animais me ajudariam a suportar o frio. Vou-me já embora.

Ela tremia, continuava agarrada à manta.

— Venha comigo até à casa, faço-lhe um chá e acendo o lume para a aquecer.

Os dedos da mulher ficaram ainda mais brancos com a força para se agarrar ao cobertor.

— Não lhe vou fazer mal, senhora. Só vi que está com frio, mas se não quiser…    

— Desculpa. Esqueço-me de que existem pessoas sem querer algo em troca. Agradeço o chá e o lume para me aquecer. Tens razão, tenho frio.

Virando-se, Norberto encaminhou-se para casa.

Na cozinha, colocou a chaleira no fogão. A mulher tinha-se sentado.  Ao contrário do que esperava, ela não estava a olhar para a casa, limpa, mas sem os luxos de outras.

— Quer dizer-me o seu nome?

— Carolina.

— Eu sou o Norberto, as pessoas tratam-me por Beto.

Virou-se para o fogão e acabou de fazer o chá. O familiar aroma de lúcia-lima espalhava-se.

Carolina fechou a caneca entre as mãos e começou a beber.

— Onde está a sua família? Perdeu-se? Quer que a leve a algum sítio?

— Desculpa estar a transtornar-te a vida, não é preciso nada, eu vou-me embora.

Num movimento único, pousa a caneca e ergue-se. Ao vê-la afastar-se em direcção à porta, segura-a pelo pulso.

— Passou a noite no curral, com frio, não deve ter dormido bem e deve ter fome. Descanse um pouco e aqueça-se. Eu tenho um resto de sopa de ontem.

Com um olhar comparável ao céu em dia de tempestade, fixa-o, como se quisesse ter a certeza de que Beto falava a verdade.

— Obrigada.

— A sopa está naquele tacho. A manta que está no sofá é bem quente e as cinzas na lareira vão manter o calor. Fique descansada, ninguém a incomodará. Eu vou levar o meu rebanho para o pasto. Volto pela hora do almoço.

— Vais deixar-me sozinha na tua casa?

— Nada tenho que possa roubar. — Virou-se e saiu.

 

***

 

A manhã passou calma, silenciosa, à parte dos sons das ovelhas e do cão. Sentado numa pedra, Beto pensava na mulher que deixara em sua casa. Quem seria? O que a levara a esconder-se no seu curral? Do quê ou de quem se escondia? Estaria lá ainda?

 

***

 

Ao entrar, os olhos de Beto pousaram no sofá. A jovem dormia profundamente. Despojou-se do casaco e das botas. Já na cozinha, iniciou os preparativos para o almoço.

— Obrigada por me teres deixado descansar.

A voz suave fê-lo virar-se. A roupa que vestia parecia-lhe estranha, mas na cidade já tinha visto roupas assim. Para ele, nada práticas, apesar de muitos as usarem.

— Sente-se melhor, senhora?

— Incomodas-te que te trate por tu?

— Não.

— Então, não me trates por senhora, o meu nome é Carolina, podes chamar-me Lina.

— Muito bem, Lina. Porque estavas no meu curral?

— Posso ir-me já embora.

Beto interrompeu-a com um levantar de mão.

— Não estou a dizer para te ires embora. Só acho estranho, devem andar à tua procura.

— Ninguém me procura e eu só quero paz. Não sou nenhuma criminosa, não fiz mal a ninguém, só quero estar sossegada.

Nos seus olhos azuis, Beto só viu verdade, dor, tristeza, o querer deixar os outros lá fora. Conhecia bem esses sentimentos. Também ele decidira estar afastado o mais possível das pessoas.

— Posso ajudar-te com as refeições, a lida da casa e até alguma outra tarefa. Só preciso de uns dias para pensar no que fazer a seguir.

— Está bem. Alguns dias.

 

***

 

Numa manhã, enquanto olhava, sem ver, as ovelhas, Beto apercebeu-se de que ele e Lina tinham caído numa rotina. Ela continuava em sua casa. Tomavam o pequeno-almoço juntos, ele levava as ovelhas para o pasto, regressava, ela tinha o almoço pronto, almoçavam, à tarde Lina cuidava da casa e ele dos afazeres da quinta. Em menos de uma semana assemelhavam-se a um qualquer outro casal.

Beto até sorria. Sem se aperceber, devolvia o sorriso doce que o saudava quando chegava a casa.

Envolvido nos seus pensamentos, de repente foi como se ainda estivesse a ouvir Lina e a conversa que tinham tido na noite anterior, enquanto arrumavam a loiça lavada.

***

 

Regressava a casa, quando percebeu que estava um carro perto da sua propriedade.

Dele saíram três homens: dois desconhecidos e o Joaquim. Era guarda republicano e filho do padeiro.

Cumprimentou-o e apresentou-lhe os outros dois; eram agentes da Polícia Judiciária.

— Foi encontrado o corpo de uma mulher, naquele palheiro abandonado, no olival que liga com o teu quintal.

— Viu algo estranho, ou alguém, por aqui nestas duas semanas?

— Não vi ninguém.

— Esta é uma fotografia da mulher. Viu-a por aí?

­            — Reconhece-a? Pela sua cara estou em crer que sim.

— Não. Apenas me parece jovem. Custa-me pensar que está morta.

— Ela não está apenas morta, foi assassinada. Chamava-se Carolina Bastos e supomos que se dirigia para a cidade, onde vive uma prima. Fugia do namorado, que não a queria largar. Pensamos que talvez ela tivesse passado por aqui e pedido ajuda.

— Não sei de nada.

— Beto, se te lembrares de alguma coisa passa pelo posto.

Joaquim e um dos agentes dirigiram-se para o carro. O outro agente ficou a olhá-lo.

— Voltaremos se tivermos mais questões.

Por fim, o carro afastou-se. Assim que conseguiu recolher os animais no curral, entrou em casa. Lina não estava para o saudar, percorreu todas as divisões e nem sinal.

Questionou-se se estaria a ficar louco. A mulher que estivera consigo os últimos dias, afinal, fora morta há cerca de duas semanas.

Foi até à cozinha. A loiça fora lavada e arrumada. No sofá, a manta estava dobrada, nada indicava ter estado ali outra pessoa. Interrogava-se como poderia ter imaginado uma mulher, que afinal era real, mas já não estava viva. Sentou-se e ali ficou.

No dia seguinte, Norberto seguiu a sua rotina, levou as ovelhas para o pasto e travou os pensamentos sobre a Lina. Não ponderava ficar louco.

Uma semana decorrida, foi à mercearia fazer algumas compras.

A dona Gertrudes cochichava com a dona Judite: — Coitadinha, foi estrangulada. Encontraram o namorado e ele confessou. Os outros polícias já se foram embora.

De regresso a casa, Beto lembrou-se de Lina, como ela lhe tinha falado da perversidade e de que só queria paz. Continuava sem entender. Recordar-se-ia dela como de um sonho. 

Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990

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carla carmona
Carla Carmona

Carla Carmona é natural de Castelo Branco, residente no concelho de Odivelas, licenciada em Gestão pela UI e com um MBA em Gestão pelo ISCAL. Tem um percurso profissional nas áreas da contabilidade e financeira. Desde cedo que os livros fazem parte da sua vida e essa paixão levou a que em criança começasse a escrever contos e outras histórias. A vida foi-lhe apresentando vários desafios que a afastaram da escrita. A sua persistência, curiosidade e vontade de saber mais, impulsionou-a a frequentar formações em escrita promovidos pela escritora Analita Alves dos Santos.

A primeira experiência literária acontece com a participação numa coletânea de contos «Que o caminho não nos fuja», sucedendo-se participações na revista literária PALAVRAR.

Apaixonada pela vida, amigos, família e marido, encara a vida com um sorriso e uma gargalhada.

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