A manhã do novo dia edénico surgira clara e luminosa, bem ao gosto de Deus. É verdade que também se cansava de tanta morneza e, por isso, criara o frio e o calor extremos. Quando lhe apetecia estar recolhido, permanecia na zona frigida do Éden, envolto numa capa de nuvem bem fofa e quentinha. Quando, por outro lado, desejava ficar esparramado ao sol, mudava-se para a zona quente, caminhava sobre a areia e molhava os pés, por vezes, todo o corpo, num lago, rio ou no mar. Povoara qualquer uma das zonas com flora e fauna diversa, a fim de embelezar o ambiente, garantir a complementaridade vital das espécies e, não menos importante, satisfazer a sua inesgotável criatividade, ou não fosse ele o Criador.
A maior parte dos dias da Criação, cada um deles uma larga fatia de eternidade, passara-a nas regiões temperadas. Nunca calculara quantos dias edénicos, determinados pela chegada e partida do astro sol, cabiam num dia da Criação, pensou, entrançando a longa barba. Questão sem relevância, desvalorizou, encolhendo os ombros.
Sacudiu, da cabeleira volumosa, as folhinhas do arbusto de madressilva perfumada que lhe servira de almofada, sentou-se e retirou um graveto que se prendera no pé direito, entre o hálux e o dedo vizinho e o arreliava com comichão. Havia decidido manter-se por mais algum tempo com a forma humana, a da sua última obra. Aliás, o mesmo fizera em relação às outras espécies: já se configurara como águia, baleia, urso… enfim, eram tantas que enumerá-las seria fastidioso. Este exercício de assumir a forma dos espécimes que ia criando divertia-o, ao mesmo tempo que o ajudava a entender as capacidades e limitações de cada um deles.
Um pássaro esvoaçou em direção a uma árvore de densa folhagem em cujos ramos construíra o ninho. Deus seguiu-lhe o trajeto e sorriu com deleite:
— Uma beleza divinal! — murmurou, inflando o peito.
Estava convencido de que os pássaros haviam sido um dos seus feitos mais bem conseguidos: plumagens magníficas, cores e tonalidades extravagantes ou singelas que demorara toda a eternidade do quinto dia a escolher e conjugar criteriosamente. Bem, o mesmo poderia dizer dos caprichos coloridos dos peixes, pensou. Na verdade, estava orgulhoso de tudo quanto fizera, apenas o último bicho o trazia apreensivo. Tinha de ir observá-lo, decidiu, mas não sem antes quebrar o jejum.
Desceu a ravina até onde sabia poder encontrar frutos sumarentos e doces. Ao longe, avistou um leão de farta juba, tão encaracolada e majestosa quanto a sua própria cabeleira divina, o que, sem dúvida, conferia uma aparência de superioridade da qual o animal parecia consciente, deslocando-se altaneiro e garboso, como se todos lhe devessem preito.
Demorou-se a sugar um fruto suculento, cujo sumo lhe escorria pelo braço até ao cotovelo, enquanto contemplava o leão que, rugindo um bocejo satisfeito, se estendeu ao sol. A pouca distância, a leoa, simples e eficiente, caçara uma presa e assistia às crias que se alternavam a mordiscar a carne fresca da vítima abatida, da qual o pai, a julgar pelo ar saciado, já retirara a parte de leão.
Isto de criar a bicharada aos pares tinha sido uma inspiração suprema, pensou Deus. É verdade, refletiu, que nestas relações entre casais, alguns parecem gozar de mais benesses do que outros, contudo não havia como evitá-lo. Uma vez insuflados de vida, cada ser começava a desenvolver características próprias e o Criador já nada podia, nem queria, fazer. Contudo, o Paraíso era extenso e estava repleto de múltiplas espécies. Se todas se relacionassem da forma equilibrada que previra, a vida naquele imenso jardim perduraria harmoniosa.
Apaziguada a fome matinal, abandonou o pomar e foi em busca da sua última criação, que, como já vimos, o trazia preocupado. E, no entanto, tinha sido a ela que se dedicara com maior empenho. O bicho não era colorido como um pássaro, majestoso como o leão, nem veloz como o tigre ou a chita. Concebera-o com alguma singeleza no aspeto, mas dotara-o de complexos dons intelectuais e emocionais, para que fosse um ser completo, feliz, justo, empático, enfim, quase divino. Contudo, e por mais que a assunção de um erro abalasse a sua excelsa sapiência, era-lhe forçoso reconhecer que algo falhara, porque tudo na criatura parecia volátil: se num momento estava alegre, cantava, brincava e mergulhava nas águas frescas do lago, no momento seguinte, tolhia-se em silêncio obscuro, ou exagerava em assomos violentos, divertindo-se a provocar, capturar e mesmo a destruir, sem justificação, animais e plantas à sua volta. Esta atitude do homem era uma perversão que Deus não calculara. Na verdade, já se sentia algo contrito por ter cinzelado criatura tão complexa e que, de imediato, desenvolvera laivos comportamentais inesperados. Era altivo, individualista e ardiloso. O grau de dissimulação de que demonstrava ser capaz era deveras chocante. Punha-se a alimentar outros animais e a conquistar a sua confiança, afagando-os com carinho, para logo os trair. Num ápice, com a mesma mão com que os acariciava, esmagava-lhes as cabeças ou degolava-os. Depois, abandonava-os ou banqueteava-se, mordendo-lhes as vísceras ainda mornas e palpitantes. Com os beiços lambuzados de sangue, estendia-se a dormir.
— Porque há de ele querer alimentar-se de carne, se nem o dotei de dentes caninos potentes? — murmurou Deus.
Nestas cogitações, chegou ao limite da zona arborizada e logo o avistou na clareira, sentado no solo, com os joelhos erguidos a servir de apoio ao queixo e os braços a envolver as pernas. O rosto sisudo, numa expressão entediada ou deprimida. Porém, o que mais inquietou o Criador foi ver espalhada, em todo o derredor, uma profusão de cadáveres de coelhos, esquilos, veados e até uma cobra parcialmente esquartejada e em agonia. Deus compreendeu que a chacina resultara da busca de divertimento e não da necessidade de subsistência. Ficou furioso, pois, se um dos elementos da Criação decidia malbaratar os recursos existentes, outros pereceriam e o próprio Paraíso ficaria ameaçado. Que raio se misturara no barro deste ser, que tão depressa amava os outros e os protegia, como se transformava em carrasco e os abatia e até se comprazia com o seu sofrimento. Se não fosse por ser Deus e o arrependimento lhe estar vedado, arrepender-se-ia de lhe ter dado existência. Continuou a observá-lo, sentando-se encostado ao tronco de uma magnólia de folhas lustrosas.
O homem ergueu os olhos, suspirou e tornou a baixá-los. Com o dedo indicador, pôs-se a desenhar arabescos na terra arenosa: círculos, quadrados, triângulos, linhas onduladas, ou cruzadas em quadrículas de esquadria imperfeita. Claro que, para ele, eram apenas movimentos ao acaso, porque noções de geometria, para já, só Deus as sabia e tão desiludido estava, que não tinha qualquer vontade de partilhar tais conhecimentos. Um ignorante é sempre mais fácil de controlar, pensava o Criador, do alto da sua potestade, atentando na atitude do homem. Mas… que estava acontecer? Pingos, grossos como chuva da estação a que chamara inverno, caíam dos olhos do malvado e encharcavam o solo, desfazendo as formas que antes rabiscara. As lágrimas despertaram a misericórdia divina, ao entender serem fruto da tristeza da solidão.
— Pobre ente — murmurou Deus. — Não o devia ter feito solitário. Criei todos os outros aos pares, mas este, empreendi que haveria de ser diverso e fi-lo singular, esquecendo que apreciar a solidão é apanágio divino — concluiu.
Urgia proceder a algumas alterações. Retirar-lhe-ia a componente feminina, que passaria a ser atributo da fêmea que havia de criar, no tempo que lhe restava, antes de se desmaterializar e partir para a próxima eternidade. Fá-la-ia da mesma matéria, para que fossem verdadeiros companheiros em igualdade, cooperativos e harmoniosos. Seria delicada, mas firme e resistente como o vime que enfrenta a corrente do rio. Curiosa e ousada. Carinhosa para bem cuidar da prole e alegre para animar os momentos sombrios que, já se vira, amiúde dominariam o macho humano.
Depois de algum tempo a arreliar outros animais, atirando-lhes pedras e paus, o homem acomodou-se à sombra e adormeceu. Deus aproximou-se dele e procedeu então às alterações que se impunham, após o que se isolou para se entregar à conceção da fêmea tal como a imaginara. Trabalhou sem cessar e nem se apercebeu quando a noite chegou. Moldou o barro com desvelo e subtileza. Burilou a forma obtida, acetinou-lhe a pele e os cabelos que logo refletiram o luar. Ergueu o olhar e, do firmamento, a lua cheia sorriu-lhe. Devolveu-lhe o sorriso e, no preciso instante em que o astro atingia o seu apogeu, insuflou a vida no novo ser: estava criada a mulher. Mirou-a dos vários ângulos: aquela, sim, era a sua obra mais perfeita!
Esperou pela manhã para observar o encontro do casal. Num primeiro momento, o homem, surpreendido com o novo habitante do Paraíso, à cautela, acocorou-se atrás de um arbusto. A mulher dirigiu-se ao lago e, com evidente deleite, deixou afundar o corpo na transparência cálida das águas. Ao homem, pareceu ser aquele, um bicho inofensivo e que muito lhe agradaria ter por perto. Quando a mulher submergiu, ele, temendo que ela desparecesse para as profundezas, correu para a segurar. Estendeu-lhe a mão. Ela sorriu e chamou-lhe Adão. Ele gostou do nome. Abraçou-a e chamou-lhe Eva. Caminharam à beira do lago, entendendo-se com muitos gestos e sons. Ele reluzia de felicidade, sem vestígios de tédio no olhar. Enlaçados, repousaram sob a árvore mais frondosa. Na copa, os pássaros chilreavam uma ode à plenitude que tudo encantava, até a serpente, enrolada em um dos galhos sobre as cabeças unidas do casal humano. Todo o Éden emanava perfeição. Enternecido, Deus retirou-se para descansar e, indiferente ao sol fulgurante, adormeceu em sono profundo.
Árvores tombadas, queimadas; bichos carbonizados, em fuga, à míngua de água e alimento; lixeiras gigantescas onde antes eram jardins.
Adão a arrastar Eva pelos cabelos, agredindo-a à pancada ou à dentada. Ela escondida, medrosa, a urdir planos de vingança.
Adão preguiçoso, irrascível e comilão. Frutos e grãos não o satisfazem, exige devorar carne. Para que ela não lhe falte, mantem em cativeiro um sem número de animais que urram em sofrimento desesperado, o que não incomoda a nenhum dos humanos.
Adão arrogante, lesto a vangloriar-se dos sucessos e, mesmo quando eles se devem à intervenção ou criatividade de Eva, jamais lhe reconhece qualquer mérito. Mas culpa-a quando algo corre mal. Compraz-se a desvalorizá-la, dizendo que não fora feita de barro tão nobre quanto o seu, mas sim a partir de um mero bocado de osso dele retirado.
Eva cautelosa, dissimulada, matreira, delineando formas de sedução para o dominar.
Eva acusada de traidora, de bruxa pecadora. Eva caída por terra, violada, queimada em fogueira como archote vivo…
— NÃO! — gritou Deus, despertando assarapantado.
Respirou de alívio, ao verificar que as visões oníricas que lhe haviam invadido o sono não eram reais. Ainda assim, questionou-se se seriam premonitórias: Viria o homem a ter mesmo o arrojo de afirmar que fora Deus a ordenar-lhe que subjugasse toda a Criação, em seu benefício, incluindo Eva? Viria ele agredi-la, como já o vira fazer aos outros bichos? Por seu lado, será que ela, apesar de frágil, o dominaria com artes de manipulação? Seriam parceiros ou opositores?
— Prefiro não… — sem terminar a frase, desmaterializou-se.


