Autor(a):

Analita Alves dos Santos

Ode à sabedoria da velhice

idadismo
nome masculino
atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade, sobretudo em relação a pessoas idosas; etarismo
Fonte: Infopédia

Somos o que pensamos, pensamos o que lemos.

Se não é (ainda) um leitor frequente, esta frase pouco sentido fará para si. Ou então, não refletiu sobre como os livros que lê influenciam o que pensa. As páginas que folheamos, o que escolhemos ver na televisão e as conversas em que participamos, tudo deixa uma impressão. Aqueles que nos rodeiam também nos marcam a alma.

«Somos a média das cinco pessoas com quem mais convivemos», diz-nos Jim Rohn.

Leio bastante. Não tanto como gostaria (o demasiado será sempre o meu suficiente no que concerne à leitura), mas nas últimas semanas li mais do que as minhas horas de vigília permitem. Leituras díspares que acabam por se tocarem e por me tocar.

Devido ao romance que me anda a devorar para ser escrito até ao final de 2024, comecei a ler Ave Mary e a Igreja Inventou a Mulher, da já falecida Michela Murgia, livro publicado pela Elsinore. No clube de leitura dedicado ao universo feminino do qual faço parte, foi proposto Maus Hábitos, de Alana S. Portero, da Alfaguara.

O conjunto destes dois fantásticos livros, nos quais as mulheres são protagonistas — e ter a consciência de que será difícil eu viver mais do que o tempo que vivi até agora —, tem feito com que esteja atenta às questões do idadismo.

Confesso, as sucessivas observações aos quarenta e um anos de Pepe e de como o seu desempenho é exemplar, apesar da sua idade, ajudaram o caldeirão de ideias que impulsionou a escrita desta crónica. Quem escreve vive em constante alerta da tal inquietação que o leve a preencher a folha em branco. Não procuramos respostas, apenas novas questões.

Vivemos hoje com um prazo de validade tatuado na testa que nos impede de fazer e ser o que desejamos (enquanto o corpo e a mente correspondem ao nosso comando)? Os que passaram a fasquia dos cinquenta estão «acabados»? A menopausa retira-nos a feminidade?

A palavra «velho» surge disseminada com uma forte conotação negativa e não como uma etapa básica da existência humana — que é o que é. Felizes os que alcançam a sabedoria da velhice.

«É verdade para todos os velhos, homens e mulheres, mas para as mulheres tem uma conotação pejorativa mais feroz, especialmente se à falta de juventude se juntar um aspeto que não corresponde aos cânones estereotipados da beleza feminina televisiva, à qual os homens velhos ou jovens não são obviamente obrigados a conformar-se», afirma Michela Murgia.

Se envelhecer é difícil, para nós é-o ainda mais. A «sociedade» (a indústria da beleza, da imagem, o cinema) exige-nos juventude eterna. Nos homens, o cinzento do cabelo é charme; as rugas, sabedoria; o dad bod (barriga de pai de família), estabilidade. No universo feminino, qualquer sinal visível do passar do tempo é desmazelo e decrepitude. «A ausência de um imaginário de velhice e de morte que resulte sereno e digno gera automaticamente processos de negação», diz-nos Murgia.

Inspirada neste desassossego, tenho procurado, no quotidiano, exemplos reais de mulheres que envelhecem «bem». A família não se escolhe, mas podemos sempre procurar ver longe.

Por sorte (ou estarei atenta?), tanto no ginásio que frequento, quanto na comunidade de autores que dinamizo, tenho encontrado essas mulheres: com mais de cinquenta, sessenta, setenta (uma quase a completar os maravilhosos oitenta anos de existência), mentalmente ativas, corpos em movimento com a vida marcada no rosto de forma visível.

Se for essa a escolha — envelhecer à sua maneira: «enquanto tivermos livros, amigos, apreciarmos a nossa companhia na alegria e na tristeza, e um corpo que se mexe, não temos idade», respondeu-me a colega de ginásio, do alto dos seus setenta e três anos, quando lhe perguntei: «Como está a ser para si envelhecer?»

Precisamos de exemplos constantes e inspiradores desta sabedoria feminina.

«Quando rimos com vontade não temos idade, fazemo-lo da mesma maneira durante toda a vida e pode adivinhar-se na nossa expressão a menina que fomos ou a velha que seremos», lê-se numa das páginas dolorosas de Maus Hábitos.

Mesmo com fatores biopsicológicos externos à vontade humana, a idade é apenas um número (e o aumento da esperança média de vida incrementou-o). Eis um lugar-comum que não me importo de repetir. Mas mais do que o número de anos que se vive, importa pensar como viveremos esses anos acrescidos. E aqui reside toda uma miríade de novos questionamentos, assunto para outra ocasião.

 

A versão original desta crónica foi publicada no Sul Informação.

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AUTOR(A)
Analita Alves dos Santos

Analita Alves dos Santos nasceu na Alemanha a 20 de outubro de 1974.

É autora, formadora de escrita e mentora literária, com certificação internacional em Storytelling, Pós-Graduação em Escrita de Ficção, Mestrado Internacional em Escrita e Narração Criativa e várias formações em Escrita Criativa. É ativista literária e incentiva o «cuidado com a Língua».

O seu primeiro livro de não ficção, «Erros de Português Nunca Mais», atingiu, em poucas semanas, o top nacional de vendas.

No âmbito do projeto «O Prazer da Escrita» dinamiza formações, eventos online e presenciais por onde já passaram milhares de pessoas.

Foi professora assistente convidada na Universidade do Algarve e formadora de Escrita Criativa no Instituto de Emprego e Formação Profissional, funções que desempenhou com o objetivo de promover a leitura e o «escrever mais e melhor».

Começou por publicar livros infantis, coordenou e participou em diversas coletâneas de contos e assina colunas de opinião em jornais nacionais.

Complementando o seu trabalho de autora, realiza regularmente ações de escrita criativa e de incentivo à leitura junto de escolas, bibliotecas e feiras do livro.

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