Autor(a):

Ana Costa
Ana Costa

Oh, pá, riam-se

Poderia recordar aquele domingo apenas como o dia em que pela primeira vez passeei de mota — de pendura, por ainda não saber conduzir —, no entanto, algo mais é digno de relembrar.

Após alguns quilómetros, recheados de sensações despertadas pelo vento no corpo e empatia com todos os que se cruzavam nas suas motas, parámos, eu e o grupo de amigos com quem ia, nas termas. Aproveitámos para ir molhar as mãos num dos muitos pontos de onde brota a água quente e sulfúrea. Estava eu neste deleite, quando ouço um senhor, mesmo ao meu lado, de telemóvel ao alto, a dizer “Oh pá, riam-se!”. Depressa me apercebi de que procurava fotografar um casal, talvez os pais. O par, estrategicamente colocado junto à enorme rocha com uma fenda, da qual parecia nascer a água, permanecia de semblante carregado. Repetiu: “Riam-se!”, quase como uma ameaça. Nenhuma expressão se alterava, ignorando o pedido. Levado ao desespero, o homem insistiu: “Riam-se!”. Gerou-se ali uma tensão à qual não fiquei indiferente. Os olhos de ambos cruzaram-se com os meus. Sorri e atirei num tom jocoso: “Olh’ó passarinho!”. Remédio santo. Sorriram para mim e a tão desejada foto foi tirada. “Obrigada!”, agradeceu-me a senhora. Por entre as pessoas que ali havia, começou a andar para ir embora e, passando quase ao meu lado, disse de novo “Obrigada!”, de uma forma tão intensa como o diria um náufrago ao pisar a terra.

Fiquei a pensar naquilo. Quem me conhece, sabe que ando sempre com um sorriso, graças ao qual até já tenho rugas de expressão, mas não me importo. Faz parte de mim e sai-me de forma natural. Talvez acredite que o mundo precisa de um sorriso e que, mesmo nos dias e momentos menos bons (pelos quais também passo), ninguém pode ficar sem ele. Mas nem toda a gente é assim, e também não tem de o ser.

De regresso à mota, com o vento a fazer-me dançar os cabelos e a voz da liberdade a aconchegar-me o peito, revi o episódio. Tento imaginar as razões pelas quais o casal estaria tão triste e sem vontade de sorrir. O que levava aquele homem a insistir num sorriso, de forma até um pouco ríspida? Pergunto-me quantas fotos existem repletas de sorrisos ocos. Parece-me que vivemos num mundo do faz de conta, em que o que realmente importa é o que se mostra e não o que de verdade se é. Sorrir para a foto… que valor terá quando a paz e a alegria estão ausentes da vida?

Com a facilidade de que hoje dispomos para tirar fotos este ato tornou-se banal e todas as ocasiões se nos afiguram ótimas para o fazer. Uma fotografia é o registo de um instante. Li algures que a melhor é aquela que fica por tirar. Neste caso, presenciei e contribuí para que a melhor daquela ocasião fosse tirada. No entanto, poucas são as fotografias que guardo desse dia. Às vezes estamos tão bem, que nem apetece disparar nenhum flash, porque o momento fica gravado em nós de uma outra forma. Basta fechar os olhos e da memória nasce o sorriso para a imagem que nenhuma câmara poderá registar. 

Partilhe:
AUTOR(A)
Ana Costa
Ana Costa

Ana Costa é natural de Viseu. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas Variante Estudos Portugueses e Franceses pela FLUC, conta com mais de vinte anos de experiência no ensino. Apaixonada pela vida, pela natureza e pelo bem-estar físico, mental e espiritual, dedica-se há cerca de dez anos ao desenvolvimento pessoal e às terapias naturais. É mestre de Reiki e terapeuta/ monitora nível 1 de Chi Kung. Sempre acalentou o gosto pela escrita, publicando textos num jornal académico — Letrear — criado quando era estudante e em jornais escolares de várias escolas por onde passou. Em 2004, publicou em coautoria o livro As Faces Secretas das Palavras com a editora ASA. Em 2020, participou com um poema na Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Vol. XII – Entre o Sono e o Sonho da ChiadoBooks. Em 2021 participou com outro poema na coletânea Alma de Mar também da ChiadoBooks. Ainda neste ano, publicou o conto “Uma ponte para o passado” na coletânea Não vão os lobos voltar e o seu primeiro livro juvenil Mergulhos na maré vazia, ambos edição de autor. Está envolvida em vários projetos literários e dinamiza Oficinas de Escrita Criativa. Acredita na força da palavra escrita e no seu poder transformador.

MAIS ARTIGOS