Olho, num balancear monótono e nauseado, para um mar infinito e pergunto-me onde está esse Deus todo-poderoso. Esse ou outro. Tantos deuses para louvar e nenhum acode.
Aparentemente, não chegaram as guerras feitas em seus nomes e os muitos que morreram não satisfizeram a fome do crer. Como explicar o desinteresse dos divinos por nós, criaturas do pó e da terra? Terá sido, porventura, insuficiente o tributo, o tormento e a desgraça?
Representantes autointitulados dos céus interpretaram pergaminhos — por outros lidos, por outros escritos, por outros ouvidos — e instruíram as leis deduzidas.
Que digo eu? As leis infalíveis! Veríssimas! Indubitáveis!
E foi com toda a justiça, disseram eles, que reclamaram a completa e bruta existência do nosso ser.
Queremos as vossas mãos, pés e braços. Queremos os vossos corações e ventres. Vomitai filhos à lama, que também eles nos pertencem. Necessários são para lutar nossas crenças e para levantar monumentos celestiais em terra.
Para eles, tijolo a tijolo, construímos casas de oração. A eles pagámos, para que fossem erguidas, com a nossa magra jorna, com o suor, sangue e existência de gerações famintas de esperança.
Tantos lá ficaram, entre argila e pedra.
Por eles, matámos, bala a bala, princípios de outrem. Por eles, combatemos os pensamentos dos nossos irmãos, que deixámos em cidades demolidas.
Tantos lá ficaram, entre ruínas e dor.
Em troca, todavia, fomos bem presenteados, disseram eles. As autoridades religiosas ofereceram-nos a certeza do Paraíso — se não é de ficar grato!
Mas só mais tarde, de corpo frio. Porque Paraíso em vida não é para todos, e não somos nós, povo inculto, pobre e malcheiroso, a ter direito a tal benefício.
Sabemos o que o profeta apregoou — igualdade e amor, fé e compaixão, liberdade aos homens na Terra —, mas ninguém da nossa casta tirará o lugar, tão merecido e destinado, à prestigiada elite humana, de certeza tão bons servidores dos céus. Aqueles que nem necessitam de rezar, pois abençoados foram logo à nascença.
Não tenham receio, peço eu, quando nos encontrarmos será para vos servir.
O vosso estrume será o nosso leito e agradeceremos vassouras, baldes e água. Se antes não a tínhamos para beber, em excesso a teremos para limpar.
Limparemos como vivemos, cabisbaixos, humilhados, abatidos. Agradeceremos as vossas esmolas e talvez, um dia, os nossos frutos, integrando-se numa metamorfose social milagrosa, partilhem um mundo de deuses mais bondosos.
«Oremos!», digo eu. «Oremos todos!»
Todos não, uma mulher e sua criança faleceram. As forças faltaram-lhes há muito. Foram os primeiros a despedirem-se. Um adeus sem falar, revelado apenas por olhos vazios. Mais seguirão, em silêncio submerso.
Neste molho de gente acanhada, ninguém se atreve a tocar-lhes, não vá a má sorte pegar-se (já chega ser herdada). Agora, ombro a ombro, há mortos, vivos e semi-vivos.
«Rezemos pelas almas deles e pelas nossas.
Rezemos por braços abertos à nossa chegada.
Rezemos aos deuses que aqui nos trouxeram
e rezemos por este pequeno barco,
de borracha porosa,
sobre este mar infinito.»


