O primeiro corpo que viu foi o da mulher. Vestia pijama e encontrava-se de barriga para baixo, no chão da cozinha. Sobre o rosto, virado para o lado, pendia um enlameado de cabelo ensanguentado e pegajoso. Na parte de trás da cabeça era visível a marca profunda deixada pelo embate do objecto que lhe causara a morte. Ainda em choque e quase incapaz de se mover, Alex vislumbrou, por detrás da bancada, um pé descalço. Outro corpo… seria? Aproximou-se. Era ele. O amante da companheira merecera a mesma sorte. Envolto num charco de sangue, jazia com o rosto desfigurado pela raiva com que lhe teriam batido. Vestia apenas um roupão branco que perdera a alvura para dar lugar a um vermelho escurecido.
Não era o que esperava encontrar ao voltar mais cedo para casa. Surpreendê-los, sim. Encurtara a viagem de propósito com o intuito de confrontar a mulher e o amante, aquele que ela julgava secreto. Dar-lhes o mesmo destino também já lhe passara pela cabeça e iniciara até o planeamento necessário. No entanto, não esperava que alguém lhe tivesse lido os pensamentos e poupado o esforço. Sim, porque matar duas pessoas requer força e energia, sobretudo quando se usam os próprios braços e um taco de beisebol. O seu taco de beisebol!
A repulsa em face do que via trouxe-lhe, contudo, um súbito instante de clareza — como pudera alguma vez pensar ser capaz de cometer tal acto? Sentia-se indisposto e perturbado. Fugiu, em pânico. Saiu de casa e correu desgovernado, ante o olhar curioso de um ou dois passantes. Nem lhe ocorreu chamar a polícia. Seria como entrar na cela pelo próprio pé, trancá-la e entregar a chave aos agentes. Nenhum outro homem, ou mulher, já agora, vestiria o papel de suspeito de modo tão irrepreensível.
Alguns minutos depois parou para recuperar o fôlego e pensar no que fazer. Diabos, se era para assassiná-los, tivessem-no feito noutro lugar. Sempre afastava um pouco as suspeitas de si. Aliás, por que raios pensara em voltar mais cedo? Para os apanhar em flagrante, claro está. Mas entendia que se se tivesse mantido fiel à data de regresso, teria o álibi perfeito para o crime que, afinal, não cometera.
Ainda desorientado e enredado nos pensamentos foi, de súbito, acometido por um terror profundo que, parecendo brotar da natureza mais íntima do ser, o envolveu completamente — como se a pele, os músculos, os ossos, todos eles fossem feitos de alguma estranha substância, obscura e cruel. A razão encontrava-se alguns metros atrás de si. Escondido atrás de uma árvore, um vulto parecia observá-lo; talvez fosse da aflição que o assaltava ou da sombra proporcionada pela folhagem, mas não lhe conseguia distinguir traços, nem formas que se assemelhassem a gente. Pensou estar com alucinações, talvez ainda devido ao choque. Decidiu telefonar ao irmão.
— Estou Davi, sou eu.
— Olá, então, já voltaste?
— Sim…epá, não imaginas…
— Então, não me digas que os apanhaste? Mas…lá em casa? A sério, ela levou-o para lá?
— Apanhei-os, pois, mas não como imaginei. Ó Davi, eles estão mortos, mortos, pá, cobertos de sangue, no chão da minha cozinha!
— Alex! O que é que tu fizeste homem? Tu…
— Estás doido, não fui eu, quando cheguei já estavam mortos!
— O quê? Mas como? Quem é que poderia… olha lá, liga à polícia, já ligaste?
— Não, de maneira nenhuma, se até tu pensaste logo o pior, imagina os tipos, nunca vão acreditar em mim. Ouve, eles foram mortos com o meu taco de beisebol! O meu! Estava lá no chão, cheio de sangue e cabelos e sei lá mais o quê! Ainda por cima, aquele sacana com quem ela me traiu também era polícia. Nunca mais via a luz do dia. Não, não, nada de polícia; acho que preciso de me esconder até saber o que hei-de fazer.
— Epá, e vais para onde? Espera, o meu apartamento de solteiro continua vazio. Vais para lá, enquanto eu tento saber o que se passa, ok?
— Sim, sim, não é má ideia; mas preciso da chave.
— Tudo bem, vai ter ao bar ao fundo da tua rua, onde costumamos ir, pode ser? Eu já lá passo.
— Ok, eu vou. Ouve, desta vez estou mesmo assustado…
— Eu sei, mas tem calma, estou a ir, já falamos.
Alex entrou no bar e sentou-se a um canto. Passado algum tempo, como não o atendessem, fez sinal ao empregado, que pareceu não o ver. Àquela hora havia bastante movimento e a luz ambiente era fraca. Sem problema, pensou, tinha tempo. Cerca de vinte minutos depois viu o irmão entrar. Fez-lhe sinal, mas Davi não o viu. Consultou o relógio e encostou-se ao balcão. Alex estava prestes a levantar-se para ir ter com ele quando, de novo, o mesmo terror o dominou. A menos de um metro de Davi, também encostado ao balcão, estava o vulto que o perseguia. O homem, quem quer que fosse, não desistia. Quem era ele? Tê-lo-ia visto a fugir de casa, a correr como um cobarde assassino? Tentou chamar a atenção do irmão, mas os nervos sabotaram-lhe a voz e tolheram-lhe o corpo. Davi olhou de novo para o relógio e acabou por ir embora. Alex permaneceu quieto, assustado, durante o que lhe pareceram longos minutos. Por fim, como se se libertasse de um torpor, levantou-se e tentou apanhar o irmão. Nesse instante passaram, velozes, dois carros de polícia com a sirene ligada. As cabeças no interior do bar viraram-se para as janelas. Os transeuntes pararam e seguiram, com o olhar, o azul intermitente e ruidoso que invadira a rua. Alex notou que os veículos seguiam na direcção da sua casa. Teriam encontrado os corpos? Decerto fora já dado o alerta. Pensou caminhar, prudente, em sentido contrário. Mas não foi capaz, tinha de ver o que ia acontecer, ficar na ignorância não serviria de nada. Deslocou-se então, inquieto, mas com aparente calma, ao longo da calçada no lado oposto à sua casa. Era uma rua larga, de duas faixas, ladeadas por passeios donde irrompiam árvores e flores em intervalos regulares oferecendo, ainda, espaço para caminhar. Em paralelo, havia pequenas moradias, com pequenos jardins.
Seguiu discreto, contando com a protecção das árvores. Não que precisasse dela, os olhares estavam concentrados no alarde trazido pelas forças da autoridade. Os polícias, que já delimitavam o perímetro junto à moradia de Alex, afastavam uma pequena e intrometida multidão. Procurou abrigo atrás de um avultado tronco que, embora o escondesse, não lhe toldava a visão. O trânsito estava interrompido. As ambulâncias chegaram e entraram com as macas. Os polícias seguiam com o seu trabalho, arredavam umas pessoas, tentavam interpelar outras, falavam ao telefone e apontavam em várias direcções.
Chegou, depois, um veículo descaracterizado. Parecia ser o inspector, talvez o responsável pelo caso. O homem saiu do lugar do condutor e bateu com a porta. Olhou em volta. Observou a casa, a multidão que teimava em não se afastar, e vislumbrou ainda o outro lado da estrada. Contemplou a árvore detrás da qual Alex se abrigava e, por momentos, pareceu olhar directamente para ele, que num ímpeto estremeceu e deu um passo atrás, quase perdendo o equilíbrio. Não! Não era possível, não podia ser. Do outro lado estava o amante da mulher!
Não havia dúvidas, o homem não podia estar mais vivo. O cérebro tentava, inutilmente, encontrar uma justificação. Será que ela tinha outro? Outro? Não bastava traí-lo com um homem apenas? Talvez o novo colega de trabalho, sempre tão prestável? Apertou a cabeça entre as mãos, como se estivesse prestes a explodir. Fechou os olhos e encostou a cabeça à árvore.
Permaneceu assim algum tempo, até que o burburinho entre a multidão aumentou e colheu a sua atenção. Os paramédicos saíam de casa, empurrando as macas com os corpos.
Assistia-se a um desfile solene — as pequenas rodas das camas portáteis, que transportavam os cadáveres fechados nos sacos, insinuavam-se num ritmo escoltado pelos passos dos maqueiros; os polícias gesticulavam e, nos seus movimentos, tudo parecia seguir uma ordem. Alex sentia-se zonzo e julgava observar a cena em câmara lenta. Até que a imagem parou, como se estivesse a ver um filme antigo e a película, a rodar na bobine, tivesse ficado presa naquele exacto fotograma. As rodas estacaram, os maqueiros também; os polícias não se mexeram e a multidão não mais falou.
Alex sentia-se dormente e estava convencido de que enlouquecera de vez. Junto à maca que transportava o primeiro corpo começou a surgir uma forma, densa e sombria, que não era forma de gente. O vulto abriu o fecho do saco, mostrando o rosto ensanguentado e o roupão manchado por um vermelho escurecido. Aos poucos, a face maculada do falecido, foi-se tornando mais limpa, mais nítida, até não haver qualquer vestígio de sangue. Horrorizado, Alex contemplava, agora, o próprio cadáver!
Não compreendia como podia estar morto. Afinal, morto que está morto deveria saber disso, sobretudo se tiver sido assassinado; mas Alex não tinha memória alguma do que poderia ter acontecido.
Naquele instante, desejou que algum anjo pousasse no seu ombro e lhe dissesse que estava tudo bem; era tão só um pesadelo e continuava vivo. Pressentiu, no entanto, que seria um demónio a ter o prazer de lhe afirmar o contrário.
A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


