Autor(a):

Rita Taborda Duarte poetisa
Rita Taborda Duarte
Resistentia Poetica

Para desenhar uma mulher

Se queres desenhar uma mulher

começa pelos pés

 

ignora – por ora – os olhos rotos

no avesso do sono   a turbulência do colo  

as águas turvas

sovando o rodízio dos cabelos.

 

Fecha um olho   estica o polegar

—   cabem-lhe perfeitamente oito corpos na cabeça:

é essa, aliás, a proporção áurea da penúria.

 

Depois é cavar  a redor e  içar talo

sorvendo o enxofre das caldeiras:

há-de medrar ao menos  um pé

de  uvas bravas ou a forca

de uma figueira

acanhando a carne dos figos

 

fixar à raiz  uma promessa de água calda

e castigada 

ruína a sal e fogo  sulfurosa ruim

desaprendendo    à força    a cisma dos caminhos

 

pelos pés se começa uma mulher

só mais tarde se dobra o degrau dos joelhos

até à coxa   

e se contorna o sexo  recatado – paul

no ventre  lêvedo

 

uma mulher começa sempre pelos pés

de barro  : Lilith  –  mordendo o pó de onde nascera,

do sarro nas unhas de deus    esporão da crença

içando a sementeira ainda quente

coalho para engolir a fome 

 

é ali que respiramos

e só  água fervente nos dana a sede

Se queres

desenhar uma mulher

vale mais começares por um pé 

de cabra.

Partilhe:
AUTOR(A)
Rita Taborda Duarte poetisa
Rita Taborda Duarte

Rita Taborda Duarte nasceu em Lisboa, em 1973. É poeta, crítica literária, professora do ensino superior (Escola Superior de Comunicação Social) e escritora de livros para a infância. Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia (Poética Breve, Black Sun Editores), a que se seguiram outros dois:  Na estranha Casa de um Outro  e Dos Sentidos das Coisas.  Em 2003, vence o prémio Branquinho da Fonseca Expresso-Gulbenkian, com o livro A Verdadeira História da Alice. A partir daí, tem escrito com regularidade para crianças e jovens, contando com mais de uma dezena de obras publicadas.

Em 2015 publica o livro de poesia  Roturas e Ligamentos (Abysmo) em parceria com André da Loba (ilustrações) e em 2019 o livro As Orelhas de Karenin (Abysmo),  finalista dos prémios Correntes de Escrita e SPAutores 2020. Reúne 25 anos da sua obra poética em 2023 no volume Não Desfazendo, que conta com um livro inédito, «Uma Pedra na boca» e um posfácio do poeta e professor Fernando Guerreiro. A esta sua obra reunida foi atribuído prémio Fundação Inês de Castro.

 

MAIS ARTIGOS