São Petersburgo amanheceu embaciada. Mirava-se nas águas do Neva, mostrando-se um tanto indefinida com toques desfocados. O céu haveria de abrir mais tarde. As formas aristocráticas retocar-se-iam, ganhando a definição eclética habitual. Corria o ano de 1865. Piotr Ilitch Tchaikovski concluía a sua formação no Conservatório Nacional. A mente genial manifestara-se desde a infância, sentado ao piano.
A música não fazia parte dos sonhos profissionais da família. Prepararam-no para a carreira administrativa. Sempre seria uma vida economicamente estável. Os mangas-de-alpaca não conheciam o desemprego, nem o som do roncar do estômago. Pelo contrário, satisfaziam-se com o compasso da batida dos carimbos, o restolhar dos papéis e o ressoar do aparo das canetas. No final, o tlim do fecho das contas batia sempre certo.
Não. Aquele não era o ritmo que o fazia vibrar, nem eram os sonhos que lhe ribombavam na cabeça. Perante a grandiosidade da máquina burocrática russa, as mãos teimavam em ritmos divergentes. A amada Rússia garantia uma carreira promissora, mas amordaçava-lhe a essência musical.
A única certeza que tinha era a de que queria compor. Revelar ao mundo a imensidão dos sons. Provocar com notas e compassos. Preencher sentidos e sentimentos que de outra forma estavam vedados pelas correntes da ética e da moral. A inspiração que lhe ia na alma e lhe queimava as veias, transbordando de adrenalina, era um espelho das emoções humanas ao ritmo de dissonâncias e contrastes.
— Não, meu caro. A sociedade russa está habituada a outras sonoridades. Não se pode ferir os ouvidos do imperador. Não se pode impor tamanha afronta.
Tchaikovski não se aquietou. Embora acolhido por grande parte da elite, era alvo de críticas dos nacionalistas musicais, que o julgavam excessivamente europeu. Entre o que se esperava e o impensável, compôs obras que moldariam a música para sempre. Quem não conhece ou já não ouviu falar de O Quebra-Nozes, O Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, a Marcha Eslava ou Romeu e Julieta? Perfeito! Sublime! Palmas para o compositor! Ecos de bravos em catadupa. Genial!
Ainda assim, a alma revolta nunca encontrou o mínimo de sossego. Como poderia conciliar a sensibilidade com as normas? Ah, mas que sufoco! Seria possível que as mãos da contenção se entrelaçassem com a inquietação da excentricidade? O sucesso, é verdade, revelou-se ao longo do tempo, mas jamais lhe apaziguou as profundezas da angústia.
Entre êxitos e críticas demolidoras, Piotr procurou reconciliar os sons russos com os europeus para criar um estilo próprio. Pagou um preço elevado. Desassossegos e depressões acompanharam-no até os últimos dias. A 28 de outubro de 1893 conduziu a estreia da Sinfonia n.º 6 Pathétique, em São Petersburgo. A melodia, composta por explosões de fúria seguidas de embalos líricos, assemelha-se a uma vida cheia de ascensões ao cume da montanha e de quedas no fosso dos sentidos.
Nove dias depois, morreu, aos cinquenta e três anos. Oficialmente, de cólera. Muitos acreditam que o sofrimento interno finalmente o venceu. A verdade silenciada, talvez permaneça tão velada quanto a neblina daquela manhã em São Petersburgo.
Hoje, Adelaide continua a deixar-se levar pela poesia e desassossego das composições de Tchaikovski, Os tempos dos palcos já lá vão. Não rodopia, não dança em pontas, não encanta num pas de deux, nem anima paixões pela sua graciosidade na elevação do voo do corpo esguio, fruto de um trabalho árduo de bastidores.
Aos setenta anos mira-se ao espelho. Não reconhece a figura que nele se reflete. Nunca lhe foi apresentada aquela mulher de rosto enrugado e de olhar profundo. Não valia a pena submeter-se constantemente ao martírio de desdobramento de imagens. Por isso, decidiu olhar, o menos possível, para o vidro.
Floyd, o siamês roliço de pelo brilhante aninha-se aos seus pés, no sofá que a acolhe, moldando-se ao corpo que tão bem conhece. A Sinfonia n.º 6 Pathétique continua a ouvir-se, para mal dos ouvidos do bichano. Não suporta aquela alteração súbita de volume e de intensidade. Mal a ouve, eriça-se e larga a correr pela casa fora. O que ele gosta mesmo é de a ver a dançar o Lago dos Cisnes em versão trôpega e desequilibrada, num esqueleto desobediente sem companheiro para um grand battement. Mas ela insiste.
Olena, a empregada ucraniana, aparece duas vezes por semana para enxotar o pó e espantar os pelos do felino, que insistem em querer fazer parte da tessitura da carpete. Desordena sempre os CD empurra os dos compositores russos para a fila de trás. Esconde-os, por assim dizer, sob o pretexto de arrumar.
— Olena, já lhe disse para não mexer nos CD Prefiro que tenham pó a ficarem desordenados.
— Sim, sim. Senhora mandar.
— Então por que é que faz o contrário do que lhe peço? Quando quero ouvir um, nunca sei onde o colocou.
— Tudo bem. Eu não arumar.
Quando a velha senhora vira costas, mistura de novo os sons e as nacionalidades dos compositores. Tira daqui, põe ali. Os russos é que não ficam à vista.
— Senhora não gostar de ouvir música em telemóvel?
— Agora o telemóvel serve para tudo, mas eu sou antiga. Gosto de CD da minha pequena aparelhagem. É outro som sem interrupções de publicidade.
— Gostar assim tanto de música russa? Na minha tera também há bons músicos.
— Não duvido.
— Conhece Alexander Mosolov? Já ouviu alguma composição tocada em bandura?
Adelaide conhecia o som de um e os acordes da outra. Intuía o significado da insistência da ucraniana. Percebia que, no imediato, os sons russos lhe ferissem a sensibilidade, que lhe apetecesse destruí-los, como Kiev ou Odessa caíram no caos. A música da guerra ecoava-lhe nos sentidos e estremecia a sua essência. Não seria culpa de Tchaikovski, nem das suas sinfonias. Há sons e ritmos que provocam náusea e outros que tonificam o sistema nervoso.
Olena chegara a Portugal para fugir dos ruídos bélicos. Adelaide refugiava-se no seu querido clássico para fugir da solidão. A empregada terminou o trabalho sem dizer mais nada. Quando estava prestes a sair, hesitou por um momento. Olhou para Adelaide, que permanecia imóvel de olhar perdido.
— Senhora Adelaide, a música não esquece, mas também não guarda rancor. Talvez seja por isso que ela toca o que nós não conseguimos dizer.
— Sem dúvida. Somos mais ou menos sensíveis. Gostamos mais ou menos de sons e de palavras. Gosto de música sem olhar a rostos ou nacionalidades. Não aprecio ruído insignificante ou desumano.
— Eu gostar de desarumar os seus CD, mas gostar desta casa, da senhora e do seu gato e da forma como me diz: “Bom dia Olena!”, “Obrigada, Olena”.
Sorriu e fechou a porta na esperança de voltar na semana seguinte para desarrumar CD de compositores russos.
Floyd saltou para o colo de Adelaide e acomodou-se, indiferente à melancolia que pairava no ar. A música recomeçou. Desta vez, a bailarina não se moveu, nem tentou dançar. Fechou os olhos e deixou que a melodia a transportasse para outro tempo, outro lugar — uma São Petersburgo distante, envolta em neblina Pathétique.