Autor(a):

Susana Forte
Per ficta resistire

Primeira Porta À Direita

Enterrar alguém é fácil. O pior é ter de abrir as gavetas. Sabemos o que advém, para além da dor da própria perda: uma adrenalina de documentos em várias plataformas. O avisar o mundo da sua inexistência e, publicamente, reclamar os deveres e afazeres que ninguém quer. É como mexer nas entranhas de uma pessoa decapitada à beira da estrada, numa tentativa de encontrar a sua documentação.

Rua Azedo de Gneco, em Campo de Ourique. Um centro luxuoso de prédios habitacionais familiares de outrora, atualmente transformado para as carteiras mais ligeiras e fartas em notas de quinhentos — ainda não se cunharam de maior valor.

O senhorio era o Monsenhor de Lisboa, também este já destripado, pele ressequida, carne e entranhas desaparecidas nos estômagos de vermes incansáveis. Também ele morto!

Abro a porta verde e pesada de madeira maciça, com ornamentação floral em ferro forjado negro, típica das portas pombalinas e lisboetas dos séculos XVIII e XIX. O ferro, rendado em motivos vegetalistas, cobre duas pequenas portinholas por cima da minha cabeça; olhos protegidos por um postigo gradeado.

À minha frente, um átrio de entrada em mármore, com uma pequena escadaria obrigatória de três singelos degraus. No patamar seguinte, correspondente ao rés do chão, vislumbro a escadaria larga de madeira, defendida por um corrimão em ferro forjado. Espera-me uma subida de três andares, degraus rangentes ao pisar da minha passada. Sons que ecoam do passado e me envolvem numa recordação clara de criança.

O Carlos vivia no segundo direito. Chamava-o irmão, mas nunca me disse que o fosse. Tinha costas largas, e eu, jeito para me agarrar a elas. Ao passar pela porta que antigamente abria para me receber, faço uma pausa, respiro fundo e, com um meio sorriso e um firmar de lábios, agarro-me de novo ao corrimão que me acompanha ao destino.

Puxo o corpo pela força de braço para ultrapassar o último degrau que me leva ao terceiro andar. Quase encostada à porta da direita respiro fundo mais uma vez, expirando profundamente, para obter a coragem de entrar na casa da minha querida avó. Lá dentro, sei que vou encontrar restos remexidos, deixados para que eu escolha o que quiser levar.

Restos nos quais tenho a certeza de encontrar tesouros escondidos, que mais ninguém encontrou.

Chave na porta, rodada duas vezes, para a destrancar com um clique que ecoa pela escadaria que acabei de subir. O som faz ricochete na claraboia de vidro, a mesma que deixava ver as estrelas e a lua, enquanto as tentávamos contar nas noites de verão intermináveis.

O cheiro a mofo adere às minhas narinas assim que trespasso a porta, fechando-a atrás de mim. Um corredor sem fim estende-se à minha esquerda, levando à cozinha. À frente, três portas: o quarto frontal, o lateral de esquerda e o quarto à direita. Pelo meio, o antigo escritório do avô que nunca conheci. Está vazio, deixando a recordação de uma escrivaninha de mogno maciço nas marcas de uma carpete sem cor. Pelas janelas, já sem cortinas, e com a luz do dia que pairava no quarto da direita, revi-me na cómoda-toucador antiga — Dona Maria — de espelho atrevido que me fazia sorrir. Abro as pequenas gavetas que sei estarem escondidas e vejo as minhas missangas de menina a sorrirem para mim, com toda a abundância de cores espalhadas sobre o tecido nobre, cor de pérola, que almofadava a pequena gaveta.

Olho-me ao espelho. Tenho um toutiço no alto da cabeça, uma farda azul e um dente a menos no sorriso. A minha avó ensina-me a cozer e a fazer colares de missangas; divertimento certo nesta recordação instantânea.

Levanto-me da cama de colchão despido e, tomando coragem, entro no quarto escuro. Tantas noites que aqui dormi…, mas que medo tinha de ficar sozinha neste lugar.

É apenas um quarto escuro, interior e sem janelas, não contando com a sanefa tapada para o escritório, mesmo ao lado.

O ar aqui dentro é rarefeito. No escuro vejo sombras como pessoinhas a deslocarem-se à minha passagem. E o armário gigante que nunca pude abrir encontra-se agora à minha frente, com fechadura destrancada.

Deixo-me ficar a olhar para ele não sem vislumbrar, pelo canto do olho, e confirmar — ou tentar confirmar — que realmente estou sozinha. 

A porta delgada de madeira rangeu ao abrir. Um arrepio contundente percorreu-me a espinha, fazendo eriçar os poros da pele. A luz está cortada. Não me resta senão apalpar o conteúdo de tecidos revoltos dentro do armário. Perdi a coragem, deixando-os ficar tal qual se encontravam.

Ainda de pele hirta, fiz menção de sair dali para fora, mas o brilho dos puxadores, areados em tempos e revelados pela luz gasta que se atrevia pela porta fez-me parar. Respiro fundo.

Com coragem redobrada, agacho-me. Deparo-me com uma gaveta impercetível na penumbra. Puxo por ela com cuidado. Desliza como se estivesse revestida a manteiga. O cheiro a guardado é patente.

Levanto com cuidado as poucas roupas dobradas. Ao canto, do lado esquerdo, no ponto mais remoto e sombrio, sinto um pedaço de madeira talhado: uma caixa, que retirei e trouxe para fora. Levo-a para o quarto à direita e pouso-a em cima da cómoda, frente ao espelho. Sento-me de novo na cama despida e fico a olhar para ela, sem coragem de lhe tocar.

O corredor lembra-me gargalhadas e corridas com a vizinha de baixo, com quem tive as primeiras experiências sexuais de miúda. Dormíamos juntas na cama gigante do segundo direito. Era só brincadeira; acho.

Ao fundo do corredor, à esquerda, uma porta fechada, que abri relembrando as primas de África que, fugidas em tempo de guerra, temporariamente para esta casa vieram.

Ali era o quarto da criada. Minúsculo. Pequena cama encostada à parede, apenas uma cadeira e um pequeno móvel de gavetas do lado oposto. Era do tamanho do armário gigante lá de casa, da coleção Dona Maria — aquele com o espelho na porta, maior do que eu já crescida.

Nunca ali entrei. O desconforto era maior do que a curiosidade.

No parapeito, a meio do quarto, repousam pequenos vidros com licores e especiarias. Soube mais tarde que a prima sobrevivente escreveu um livro de culinária. Ou, pelo menos… tencionava fazê-lo. O porquê de serem primas nunca entendi, principalmente pela cor da pele. Se em tempos perguntei, já não recordo a resposta.

Aproximo-me da luz que irradia da marquise onde termina a casa. As janelas altas, ladeadas por ferro forjado pintado de branco, deixam o sol escorregar para dentro. Avanço, mas detenho-me junto da abertura à direita, onde um dia existiu uma porta. Lá dentro, a sala de jantar espera.

O relógio-coluna continua plantado na parede ao centro. Na mesa oval, reza a história de que o meu pai em jovem perguntava as horas de braços esticados, num preguiço evidente, de forma a disfarçá-lo perante um pai austero do início do século XX.

Sigo em frente e poiso no chão antigo do final do seculo XIX., ladrilhos brancos e pretos onde tantas vezes joguei à macaca. À minha volta, restos de talheres nas gavetas fechadas, tachos e frigideiras que levo comigo no caminho da saída — local de onde os aromas mais saudáveis para as narinas enchiam-me a boca de saliva, ainda antes de os provar. Parei uns instantes, sentindo a mão da minha avó velhinha a puxar-me para a bancada cheia de farinha. Na cabeça, uma peruca loira de cabelo comprido que abanava só para a sentir roçar nos ombros. O sabor dos rissóis queimava na boca. Sempre me queimaram, mas eu continuava a morder.

Dirijo-me à marquise. Chego-me às grandes vidraças manchadas pela falta do jornal que, com vigor, a minha avó esfregava para as deixar translúcidas.

Encosto a testa ao vidro, agora baço e morno do sol de fim de tarde. Olho para fora, para os telhados que sempre me pareceram tão distantes e, ao mesmo tempo tão meus. A escada de incêndio continua lá, ferrugenta e pendurada no vazio.

Vejo, na minha mente, a roupa a dançar ao vento, enquanto a minha avó, com as mãos entrelaçadas no colo, desesperava no chamamento usual: «Anda para a mesa que a comida vai arrefecer», «tudo sempre a correr, sempre a escorregar-lhe das mãos», dizia. Mas ela agarrava tudo, mesmo assim: a vida, a casa, as receitas… e a mim.

Volto-me para a bancada de pedra gasta, onde repousam a velha balança de pratos da fábrica do meu avô paterno, e o frasco de vidro com grão-de-bico, agora seco demais para ser salvo. Passo os dedos pela superfície fria, como se pudesse acordar um qualquer eco do passado. O som da colher de pau a bater no tacho, o assobio do lume no fogão a gás, o estalar da crosta do pão cortado ainda quente, com um pano de algodão a proteger as mãos.

Tudo era feito com tempo. E amor — mesmo que embrulhado em ralhetes.

Aperto os olhos por instinto e inspiro fundo. O cheiro do arroz-doce ainda me tenta. Mas não recordo se gostava ou se me obrigavam a gostar.

Deixo cair os ombros e, de olhos fechados, encaro a sensação do chão. Sigo o meu instinto, passo a passo. Devolvo as recordações à casa. De frente para o corredor, respiro fundo, e com a coragem redobrada faço intenção de o percorrer de volta ao quarto da direita.

Sento-me na cama despida, a olhar para o velho espelho da cómoda-toucador antiga — o tal das missangas, das pequenas gavetas cheias de pingentes, terços, linhas e alfinetes de dama. As escovas de prata desapareceram da pequena bancada de mármore.

Resta apenas uma caixa de pau-preto com incrustações metálicas de algo que nunca consegui interpretar.

Deixo-me ficar uns instantes a estudar a sua estrutura. Inclino a cabeça para a esquerda. Um canto de papel sobressai pela tampa fechada.

Nada que não possa descobrir… se apenas abrir a tampa, presa por uma simples mola.

Num reflexo irrefletido, pouso a mão sobre a madeira. O polegar crava-se no bico do fecho, que cede com um impulso inevitável.

Abro a tampa com subtileza. Junto as mãos no colo, entrelaçadas. Um envelope amarelado pelo tempo, com uma caligrafia que reconheço de um passado esquecido, repousa no fundo.

Olho para mim. As córneas dos olhos estão enegrecidas. Quase não me reconheço.

No envelope, leio uma frase escrita pela minha própria mão: «Para ti, se algum dia for tarde demais».

O dia chegou… ou talvez nunca tenha passado. Guardei o envelope na cómoda, tal como ela fez com tudo o resto.

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AUTOR(A)
Susana Forte

Susana Menezes Forte nasceu em Portugal e cresceu na Grécia, onde aprendeu que as palavras têm sotaque e memória. É autora de Rosas Vermelhas e de vários contos publicados em coletâneas. O seu percurso cruza o jornalismo, a psicologia, as viagens e a missão humanitária, que transformou em matéria-prima literária. Divide-se entre a realidade crua e a ficção intensa, com um fascínio especial pela emoção, pelo corpo e pelas entrelinhas. Vive com patudos por filhos, escreve de madrugada, e acredita que o passado sabe o caminho de casa — como se lê em Primeira Porta à Direita.

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