«Ouves a água? Já cá estamos.»
Ouvia: primeiro quase nada, depois mais que tudo. Habituara os ouvidos ao ruído dos passos bruscos e aflitos dos nossos pés, às investidas de bichos armados e nocturnos, ao resfolegar das ervas altas que nos escovavam as roupas. Mas agora: água. O seu crepitar gelatinoso. Era, parecia-me, o som de coisas que se abriam.
Com mãos trémulas, começámos a despir-nos junto ao rio. As calças. Botão por botão, as camisas. E também as meias. A roupa interior.
Depressa ficámos nus. Não fora a Lua, não o veria.
Não nos tocámos. Temíamos tocar-nos. Estávamos tão perto.
Do outro lado.
«Vestimo-las já?», indaguei. Ele fez que sim. «São mais fáceis de vestir agora que estamos secos.» Assenti e abri a mochila, tapando o nariz. Comecei pelo pé esquerdo, depois o direito. Moldei as coxas. Levou algum tempo a ajustar cada dedo do pé.
Quando ficámos prontos, a água ainda corria. Preta e branca, de noite e luar.
«Eu vou primeiro, tu vens atrás. Dás-me a mão se escorregares, sim?», disse ele em surdina. Se fosse de dia, outro dia, teria reclamado um pouco de coragem. Mas era de noite, aquela noite, e a fraqueza assentava-me melhor que o que trazia vestido.
Ele aproximou-se da margem, perscrutando com os dedos a vegetação anónima. Acocorou-se antes de deslizar para dentro do rio. Segui-lhe o exemplo. Agarrei num arbusto, às cegas, até sentir espinhos silvestres rasgarem-me a pele. Apercebendo-me do que sucedera, recolhi a mão e evitei voltar a tocar nos vultos pardos em redor.
Perdi uma perna clara, e a outra, para o banho gélido. Os pés não gostavam do solo de limo, mas quase não senti dor ao pisar os gumes rochosos. Ele estava mesmo à minha frente. O rio era estreito, contudo a água chegava-nos à cintura e a corrente era forte. Mesmo assim, resisti a dar-lhe a mão. Como seria: dar a mão.
Àquela mão.
A travessia era de meia dúzia de metros, mas esticava-se sob a pele. Ao dormir, fazia aquela passagem há meses, deixando para trás a miséria da minha terra. Era capaz de abrir mão de tudo, porque tudo era ínfimo, e mesquinho, e magoava. O luar não era forte que bastasse para que conseguisse ver o meu reflexo destrinçando-se na corrente.
Galguei uma última pedra e despi-me da água. Cá estávamos. Tanto imaginara como seria, mas era tal qual o outro lado. Para mais, verificava-me estrangeira. Fiquei envergonhada, sentindo-me seca e estranhamente mal-vestida. A maneira como ele se mexia dava a impressão de que sentia o mesmo.
Mas ainda estávamos nus. E, por isso, tirámos a roupa da mochila.
Apalpei a camisa a medo, apercebendo-me de que não conseguiria ser outra.
«Eles também usam este tipo de roupa? Não vamos deitar tudo a perder por usarmos roupas de preto?», perguntei-lhe, afogueada e consciente de que não éramos bem-vindos. Ele chegou perto e pude ver como os olhos lhe ficavam mal na cara, estranhamente fundos sob a camada de si que não era a sua.
Como um estranho.
«Roupas de preto? É roupa. Veste-te rápido antes que venh…»
A palavra quedou-se-lhe pendurada da boca escancarada, uma boca que, tal como os olhos, lhe ficava demasiado funda. Tombou para o chão, destapando o guarda na sua traseira, que com uma navalha lhe traçara o destino.
Também a mim me tomaram, por trás, abraçando a pele que me abraçava.
«Rouba-peles de merda», rugiu o guarda que o atingira. Agachou-se sobre o seu corpo e, com a lâmina, abriu-o de cima a baixo. Sob a película clara encarquilhando em pregas, a sua linda pele escura era longa e fúlgida como uma ferida.
«A quem é que as roubaram? O que é que lhes fizeram?», intimou o guarda que me agarrava, sacudindo-me, pálida, entre as mãos hirsutas.
A cara da mulher que eu matara apertava o meu rosto.


