Autor(a):

Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho

Se a tua respiração fosse uma música

Na praceta, todos riam, numa espécie de musical para pequenos alegres e entusiastas. Em corridas, perseguiam a amizade de cada um. Verão quente aquele, que colava os cabelos às testas, gotas de suor a escorrer até ao queixo, mãos e unhas pretas da calçada, joelhos esfarelados pela mesma. Perdidos na inocência, o caminho era fácil, algumas com percursos arenosos passados aos saltitos entre o elástico ou numa apanhada qualquer. As crianças da aldeia tinham a língua destravada, perdiam-se em conversas tolas que só elas pareciam entender.

A avó de um fazia gemadas para todos e, lambuzados, com os lábios a brilhar de açúcar, não desconfiavam que o silêncio, num mundo de uma criança, por vezes faz doer.

Assim era a moçada da Praça da Música. Mas naquela tarde, uma delas esquecia-se de como brincar. Há horas, encostada à parede, por debaixo da janela do quarto da mãe, aguardava de pés juntos, como quem se preparava para fugir. Da janela aberta, ouvia o silvo na respiração da mãe, melodioso e constante. A mãe de Madalena estava doente e pouco a criança podia fazer para a ajudar. Valia-lhe a insistência dos sete anos mal medidos. Mãezinha, eu faço. Vá descansar. Madalena não sabia que uma mãe toca várias panelas ao mesmo tempo e, nos derradeiros acordes, uma mãe pouco ou nada sabe como parar. Além disso, os sintomas vinham do passado e pareciam acumular-se. A doença de uma transpunha rios e afogava a outra.

Madalena vivia agora no caos. Os papéis invertiam-se e os banhos eram tomados por mãos pequenas e atabalhoados gestos. Uma esponja tão grande para a tua pequenita palma. Era assim que a mãe lhe dizia. Como o mundo, Madalena, que é tão pequeno para tanto amor. Depois cantarolava uma música triste que tinha decorado pela boca da avó. Decora filha, um dia também a quererás cantar, dizia-lhe. Porquê, minha mãe? Porque a música eleva as nossas súplicas ao céu.

Os sintomas habitavam o corpo da senhora. No início, a mãe procurou a cura nos médicos, depois foi à Velha Branca, que todos conheciam, mas de quem ninguém queria falar. Bebeu xaropes, diluiu líquidos no sangue, comprou gorros coloridos, mas ninguém ganha amizade ao sofrimento. Era como viver com um leão por perto, que parecia crescer quanto mais se alimentava dela.

Certo dia, Madalena viu a mãe trazer-lhe um pote de vidro com rolha de cortiça.

Filha, quero que te esqueças do sofrimento. As duas vamos escrever tudo o que nos magoou e colocamos todos esses venenos no pote das memórias tristes. O pote vai fazer-nos esquecer.

E se eu algum dia eu quiser tocar nas memórias, perguntou-lhe Madalena, esperançosa de algum dia as poder resgatar. Há memórias tristes que me ajudam a lembrar de coisas boas.

Está bem. Então escolhe apenas uma e guarda-a junto a ti, para sempre.

E escolheu: A respiração da minha mãe é uma canção de amor.

De costas encostadas à cal morna, lembrou-se do pote que acompanhava a mãe nos descansos, cada vez mais frequentes. Os amigos jogavam à «macaca». Por vezes, vinham buscá-la. Corriam até ela e pediam-lhe um sorriso. Contavam-lhe piadas. Traziam-lhe joaninhas para lhe fazerem cócegas nas mãos. E azedas para chupar. E conversas soltas para a informar das peripécias.

Afinal, continuava criança e acabou por aceitar pular com os outros, enquanto a mãe dormia. Quis jogar às escondidas e depois à «macaca». Era boa na arte de pular ao pé-coxinho. À medida que jogava, percebeu que as linhas do jogo começavam a apagar-se. Um pulo, um desaparecimento. Outro pulo, e uma linha a voar com a brisa que se levantara. O coração dela a acompanhar o impulso do corpo e o toque do pé no chão. A mãe a dormir. O pote na mesa de cabeceira a sugar as restantes linhas e a melodia do assobio. Espantada, correu para casa para contar à mãe que as marcas de giz da «macaca» desapareceram quando o silêncio invadiu a rua. No quarto da mãe, viu o pote cheio com as linhas do jogo e no meio a linha da vida.

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Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho nasce no ano de 1980, em Lisboa, é a quarta geração a residir numa vila Lisboeta por onde tantos escritores já passaram. Licenciou-se em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada em 2004, tendo posteriormente completado uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos.

É casada e mãe de dois filhos. Da sua família sacia o amor, a união e a força para os seus projetos.

É nas páginas dos livros que encontra refúgio e será através das suas palavras que procurará deixar um legado. Conta com a participação em várias coletâneas e revistas digitais, enquanto contista. É co-fundadora do podcast «Livros a três» e desenvolve um papel ativo em projetos de formação de Escrita Criativa e na divulgação da importância da leitura.

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