O som da campainha arrastou-o para a minúscula realidade do quarto. Os olhos, estremunhados pela vigília, fixaram o teto como se esperassem licença para regressar ao dormente aconchego. Três toques insistentes estilhaçaram-lhe a vontade. De ceroulas e camisola de lã, dirigiu-se à entrada. Do binóculo descortinou apenas um emaranhado de caracóis negros que se empoleiravam num pescoço franzino e amarrotado. Abriu a porta até onde a corrente de segurança permitia. O moço de recados não disse palavra. Limitou-se a enfiar um envelope pela frincha entreaberta. Em segundos, descia, com estrondo, a carunchosa escadaria.
Sentou-se à secretária e pousou a carta tão bruscamente como o queimar de uma brasa que atiçava à lareira. Num domingo, quem ousara enviar uma missiva sem a sua bênção pessoal, pensava. Remoía a incerteza com vontade de trincar a curiosidade, mas não o fez.
Preferiu realizar os exercícios de ginástica sueca. Pessoa sempre se melindrava, quando a imagem o enfrentava no espelho. Um corpo debilitado, uma alma rica em devaneios, foram estas as palavras da menina Queiroz, há três dias, quando ele ganhara ímpeto para travar aquela paixão carnal. Recordou a tristeza do seu rosto na esplanada d`A Brasileira. Ao aproximar-se dela, tossicou, a tática usada sempre que pretendia que Ricardo Reis assumisse as rédeas da conversa e permitisse Fernando proteger-se no Carpem Diem estoico, derradeiro escudo para travar os avanços de compromisso desejados pela menina Queiroz. Não se lembrava da ocasião em que a notara mais exigente com aquela relação platónica. É certo, a ideia de convidar Ricardo Reis teria acelerado a vontade da moça. Ela incomodava-se com os heterónimos e nem o tempo atenuara a dor de partilhar o amor com uma irmandade tão desigual e de papel. No entanto, naquele dia, as lágrimas de Ofélia cristalizaram o ressentimento, ao ouvir as palavras agrestes do fim de um amor, fosse ele qual fosse, mas depressa o seu pranto recuperara o inofensivo caráter da jovem. Pessoa não tinha dúvidas de que, após a tormenta, ela o compreenderia.
Depois do almoço, mirou a carta sem remetente. A rigidez dos exercícios matinais dera-lhe ânimo à alma. Confirmou nos seus cálculos astrológicos que não se previam tempestades por esses dias. Reforçada a curiosidade, esventrou o envelope. A missiva datilografada adensou o mistério. Começou a ler.
«Senhor Fernando,
Espero que esta carta o encontre de boa saúde e perfeita harmonia neste dia de descanso. Desde já apresento as minhas singelas desculpas por invadir a sua privacidade dominical, mas o assunto é sério.
Provavelmente não me conhece, mas eu tenho-o como amigo há alguns anos. Deixe-me esclarecer alguns detalhes, antes que desista de continuar a ler, pois nunca foi capaz de se ficar pelo sentido objetivo da vida, não é assim? Que fascínio o seu pelo esotérico! Já para não usar as suas próprias palavras: «coração, esse comboio de cordas…a entreter a razão». Perdoe-me o desleixo da transcrição!
Pessoa largou a carta. Levantou-se e deixou que os seus passos miudinhos calcassem o chão como quem enterra demónios. Quem se atreveria a zombar das suas palavras, da sua forma de viver? A sua obra era o seu propósito, um bem maior para o mundo, uma oportunidade de revelar a genuína vida de um homem e dos seus medos, anseios, dúvidas.
Enquanto refreava a acidez daquelas palavras, alguém se sentava no banco três do Jardim Botânico, com vista para o Tejo. Quem reparasse nela, diria que a sua beleza enfeitiçava, diluída num vestido de decote grandioso. Os óculos escuros escondiam uns olhos ávidos de amor, uma sede de vingança perfumada pelos anos de crua existência. Também a olhar o Tejo, Pessoa sentia algo estranho, como um medo que arrepela a nuca. Ele desconhecia quem lhe escrevera a carta e tão pouco as pretensões daquelas palavras. Determinou-se a acabar a leitura.
«Ironia, na verdade, tantas vezes o ouvi recitar as insignificâncias que escreveu. Desculpe-me a frontalidade, mas é o que sinto. Não posso aceitar o que fez à pobre menina Queiroz e, por isso, é Hora das apresentações.»
Pessoa voltou o olhar para dentro de si. Como não me surgiu essa conclusão, meditava. Alguma amiga, tomada por um sofrimento solidário; não há outra justificação.
«Maria dos Prazeres Santos, solteira e datilógrafa de profissão. Muito prazer.»
O nome não lhe trouxe recordações.
«A menina Queiroz nunca lhe falou de mim, posso garantir. A nossa estranha amizade vive do ocultismo, algo que bem domina, não é verdade, Senhor Pessoa? Vou dar por terminada a retórica que o enfadou até aqui, se, entretanto, já não amarfanhou várias vezes esta missiva para aliviar a dor de pensar.»
Pessoa amedrontou-se com o calafrio que lhe abanou todo o corpo, mas a humanidade curiosa que nos habita levou-o a continuar.
«Faço-lhe uma proposta irrecusável: pelas cinco da tarde estarei sentada no banco três do Jardim Botânico à sua espera. Se não encontrar o banco, reconhecer-me-á pelo vestido encarnado e pela sombrinha negra. Aguardo-o, ansiosa pela agradável conversa que teremos virados para o Tejo. Sendo o senhor um cavalheiro, não me fará a desfeita. Termino assim esta curta missiva, pedindo-lhe que aceite, como singela despedida, a minha transcrição livre de uns versos da sua autoria: «Dizem que finjo ou minto tudo o que faço? Sim.»
Os melhores cumprimentos desta incondicional admiradora,
Maria dos Prazeres Santos»
Durante horas, Fernando viveu na espiral da incerteza.
Retirou o relógio de bolso. Apesar das sombras e dúvidas que o envolveram durante horas, decidiu encontrar-se com a misteriosa mulher, numa espécie de coragem momentânea. Duvidoso no espírito, entre a imagem de uma emboscada ou fazer dele um energúmeno pesou a decisão na balança da sua consciência: enfrentaria o desassossego. Por um lado, temia ser perseguido pela mulher. Mal se livrara ainda do desgosto que dera à menina Queiroz, mesmo ela sabendo-o incapaz para o amor, para a essência total do substantivo; por outro, as palavras avinagradas, a ironia que o apunhalava no ego, arrastavam-no para a misticidade da descoberta.
Percorrera poucos metros das entranhas do jardim, quando detetou a mancha encarnada protegida pelo negro. Estacou junto a um arbusto que lhe autorizava privacidade suficiente para vigiar a figura feminina. Nada lhe era familiar, embora não conseguisse ver-lhe o rosto. Nesse instante, ela virou-se como se a brisa do descaramento dele tivesse denunciado a sua presença. Algo no pescoço dela sobressaltou Pessoa. Uma borboleta, tom de café com leite, um sinal de nascença. Não podia acreditar. Se alguma vez sentira carinho, acabara de se materializar em algo que a sua veia poética expressaria ser «um abismo de raiva no topo da montanha triste». Apressou-se em direção à mulher. Quando a encarou, o gesto dela silenciou-o.
«Afinal a coragem tornou-se sua companheira. Estimo em sabê-lo.». Fernando fixou-se no decote grandioso da mulher. Por momentos, sentiu Bernardo Soares roubar-lhe o espírito. Evadiu-se para uma cama de tamanho descomunal com lençóis de seda vermelhos; pétalas semeadas pelo chão, suores celebrados com prazer. Congelou os pensamentos.
«Como foi capaz, menina Queiroz?»
«Engana-se, Senhor Pessoa. Apresento-lhe a minha heterónima, Prazeres Santos.