Havia dois muros em lugares opostos: um, junto aos dois sobreiros, vistosos e robustos, outro, a uns metros, junto ao cipreste e ao silvado. Neste último nada atraía, a não ser em junho e setembro quando o negro e o vermelho das amoras disfarçavam os grandes espinhos e cobriam o muro de cor.
Surgiram aí as duas primeiras casas, paralelas às árvores e aos muros peculiares, que vieram a se confirmar, depois de destruídos, serem património romano. Enquanto essa desgraça não acontecia, um dos muros de três metros de pedras brutas e de distintas dimensões alojou o descanso dos poucos habitantes que ao longo do último século imprimiram ali próximo o seu espaço.
Aos domingos, à sombra dos sobreiros, primeiro lugar escolhido, os homens sentavam-se no muro e aconchegavam as costas aos grandes troncos. Jogavam às cartas durante horas, já com as manhas moldadas aos dedos e trocos, que telintavam nos dentes arreganhados dos sortudos.
As mulheres estendiam os bordados em linho no muro com um cuidado meticuloso e mostravam às lentes atentas as horas infindas de pontos. Um por um, cobririam mesas fartas ou as rezas da paróquia. Traziam também os seus banquinhos de madeira, onde depois se apoiavam para subir ao muro, vigiar o tempo e as crianças que adivinhavam os bichos em troncos apodrecidos.
Sentados nas ervas, evitando as urtigas, os enamorados rabiscavam nas pedras do muro promessas. As mãos trémulas denunciavam a contenção do calor que os consumia.
A casa mais próxima ao muro pertencia a dona Filipa. Nunca deixou de abrir os ferros pedreiros das suas portas verdes, nem depois de a filha emigrar, ou o marido ser levado por uma pneumonia. A vida estendia-se para lá das pedras. Os cheiros comungavam entre o bolo de laranja e chá de hortelã-pimenta. Então, acontecia: o sol demorava-se mais ali e encegueirava; o muro transformava-se no altar das suas vidas.
O impensável aconteceu quando dona Filipa começou a rebobinar o passado. Encenou atitudes e conversas, ressuscitou pessoas e lugares. O seu esquecimento culminou num incêndio, que levou parte da casa. A consciência regressou com pressa e a filha veio buscá-la. Desta vez dona Filipa não recusou. Tinha medo de ser deixada na solidão de um quarto e só a encontrarem semanas depois.
Chegou ao sítio um empreiteiro conhecido por possuir diversos hotéis. Depois de medições aqui e acolá, papéis despachados com um empurrão de uma palmada nas costas, as máquinas tomaram conta. Aquele muro romano foi o primeiro a sucumbir. Logo a seguir, os sobreiros de dois séculos e por último, a casa.
Afastados do movimento, os habitantes assistiam impotentes à marcha fúnebre das suas memórias despachadas em máquinas e camiões. Em menos de nada, dispersaram-se das poeiras, mas o barulho resmungava nos engenhos enfiados na terra.
Aos poucos, encaminharam-se para o outro muro romano junto ao cipreste. As costas evitavam os espinhos que engoliam a casa junto a ele construída. Algo os incomodava, sem ninguém precisar o quê. Evitaram as sombras durante tanto tempo, mas caíram todas sobre eles, de uma assentada.
No muro distribuíam os cestos de vimes com os bordados, o baralho de cartas, os terços. As pedras puxaram fios ao linho, as cartas perderam-se nas fendas das rochas, as crianças esfolaram os joelhos e os enamorados foram arranhados mesmo antes de se tocarem.
Contudo, habituaram-se ao novo lugar.
Quando o silvado desabrochou, o pequeno portão enferrujado destacou-se no centro da moita. Um túnel de flores brancas marcava a entrada da casa. No entanto, não o suficiente para chamar a atenção à chave a baloiçar na porta, às três peças de roupa a secar e à caixa de vegetais frescos, que estorvava o trinco deixando uma pequena abertura.
No mês seguinte, as crianças, carregando pacotes vazios de leite cortados em forma de cesto, foram apanhar as amoras. As mulheres prepararam-nas para o doce, enquanto os homens golpeavam a massa para o pão. Deliciaram-se até a ponta dos dedos sob as últimas labaredas do dia. Talvez esses cheiros disfarçassem a decomposição crescente, que invadia a rua. Talvez as novidades daquele lugar fizessem perder os sentidos.
Três meses depois, descansavam os cestos com a merenda em cima do muro, quando as águas os engoliram num ápice. Nem os bancos evitaram molhar as saias das mulheres, nem as calças dos homens se safaram, mesmo arregaçadas até o joelho. As crianças a chapinhar sujaram as roupas de domingo e o fervor dos enamorados foi apaziguado.
Detetaram a levada de rega dos terrenos alterada e assim que a corrigiram, o muro sacudiu toda a água e foi de novo altar.
— Quem desviou a água? – perguntou um dos homens dirigindo-se às crianças. — Esconderam as gargalhadas nessas bochechas rubras!
Uma voz respondeu dentro da casa. Ninguém ouviu.
No domingo seguinte, o muro estava coberto de terra que fervilhava, centenas de larvas e varejas dominavam todo o espaço. Uns colocaram as mãos à boca, outros à cabeça. Quase a desistir, depois de uma hora indecisos, tiveram a ideia de desviar de novo a água de rega. Tudo foi limpo em instantes, as larvas engolidas pelo chão, as varejas afugentadas.
— Saiam daí! — Ouviram uma voz escorraçar através das janelas da casa junto à moita. — Saiam daí ou nunca terão paz!
Perplexos, viraram-se na direção da casa do silvado, ninguém reconhecia aquela voz.
— A rua é de todos. — gritaram, respondendo à ameaça. — Que atrevimento. Não podes calar a rua!
Quando se aproximaram do sítio de novo, as mãos em punho iam já prontas para mais um desafio. Tudo parecia como dantes, até alguém soltar um gemido assim que tocaram o muro. Ninguém conseguia se aproximar sem gritar um ai, escaldava. Deambularam às voltas, esperando arrefecer, até que ouviram de novo:
— Saiam daí! — Mas já ninguém deu troco à voz.
No dia seguinte, o sítio acordou em sobressalto, o muro onde se sentavam estava estilhaçado, no seu lugar uma cova marcava o alinhamento à porta de casa. O silêncio cresceu nos rostos olheirentos. Todos tiveram uma noite agitada:
— Ouvi ruídos noite dentro, acho eu, espreitei a janela e vi um vulto curvado derrubar o muro de malho na mão, a cada pancada, a mesma voz da casa gritava: — saiam daqui — outra pancada e gritava — a morte está no caminho.
Outro disse:
— Vi as feições de uma mulher, sem dúvida uma mulher. Agarrou uma enxada e cavou durante horas. E que força, senhores! Enquanto eu trocava o sono pelo pesadelo, ela trocava a enxada pela pá, e atirava terra para as margens do buraco.
Outros ainda:
— Senti a minha cama estremecer, uma velha dançava na cova ao mesmo tempo que metia as mãos aos bolsos e espalhava o que achei ser sementes, depois, enchia as mãos de terra que atirava ao ar. Deitou-se lá mesmo, juro, acariciando os quatro cantos e trauteando de mansinho: “dorme, dorme, meu menino.”
Ninguém sabia se suspirava de alívio ou de aflição. Os pesadelos têm destas coisas, agarramos na realidade e levamos a fazer contas no sono. Entre esta indecisão interior, viram finalmente o que há muito lá estava: a chave na fechadura da porta, a roupa no estendal a meia haste, já tresmalhada do sol em demasia e a caixa com os agora podres vegetais que estorvam o trinco deixando uma pequena abertura.
Entraram derrubados pela necessidade de certezas.
No chão, a dois passos da entrada, deram com um cadáver. Já não se lhe reconheciam feições, o vestido indicava ser a mulher da fotografia centrada na parede. A imagem retratava mais dois: um homem fardado e um menino que, em cima do muro, sorria com um ramo farto de flores na mão.
Ninguém poderia imaginar que naquele mesmo muro lhe morreu o filho nos braços, há vinte anos.
Queriam respostas urgentes que lhes acalmassem as insónias, mas a rua calou-se.
Três meses depois, a cova onde estava o muro rebentou de vida, as flores nasceram vistosas e coloridas, os mesmos junquilhos das mãos daquela criança.


