«A infelicidade esconde-se na sombra.»
A frase da obra “Bartleby, O Escrivão” de Herman Melville guia-me durante dias numa reflexão profunda e cuja conclusão não só me leva à contradição do sumo que dela bebemos, mas acima de tudo do quão importantes são os opostos na vida.
O escrivão, caráter introvertido e misterioso, recusava-se a cumprir qualquer ordem, simples ou complexa. Sem dúvida um homem com coragem, certo? Quantos de nós temos o poder de afirmar, com os dedos dos pés fincados (mais difícil de confirmar durante o inverno), que se não desejamos, não o fazemos ou se não o lembramos, não o vivemos? A tendência permanente de se acreditar na força das “três letras” é insuportável, essa palavra bajuladora do medo. Ou talvez seja o seu oposto: completamente aceitável.
Fecho o livro e dirijo-me às escadas que dão para a rua. Apetece-me usufruir da noite sem o chamamento da espreguiçadeira, recém-inquilina da varanda. Deitada tenho dificuldades em impedir que os pensamentos se escapem num ressonar leve e justo.
Costas direitas, joelhos a amparar o queixo. Elevo os olhos e passo além da testa enrugada, na tentativa de esvaziar o pensamento e admirar os flashes estrelares que impõem a sua presença.
Terá o dia inveja da noite, questiono-me. O mundo vive, respira, mesmo quando a sombra nos encontra. Ou será a noite sedenta da vivacidade do dia? Por alguns segundos, o piar da coruja, companhia noturna, distrai-me da reflexão. Com o dedo indicador afago a mecha de cabelo atrás da orelha. Sinto que mais uma onda pretérita se prepara para beijar as orlas do meu presente. Afinal, prefiro o sim rechonchudo, ou desejo que o advérbio de negação de “três letras” seja espada, escudo da batalha que travo com o passado? Durante a nossa existência são tantas as emoções que sangram, dão à luz, nos empurram e nos fazem aprender. Porquê resistir ao que não desejamos relembrar?
Agarro no comando da vontade e forço-me a recordar algo que, apesar do sofrimento, da angústia, da revolta, prefiro sim!
E é nesse instante que a comichão subtil na nuca me arrasta ao encontro da minha criança de sete anos. Rio-me da ironia. Regressar à infância, tempo mítico de um perene reinado: «Quero este brinquedo!» Resposta: Palavra de “três letras”; «Bateste no teu amigo; isso “três letras” se faz”. Como me pode isto mostrar que desejo o sim, que quis e quero aceitar algo que a normalidade o subjetiva de oposto?
Iço três dedos para acalmar a impressão no cocuruto. E, de repente, lembro-me. Na segunda classe, recebemos amigos novos. Entre eles, uma rapariga escanzelada, anormalmente alta e de olhar baço. Descobri nesse dia que, além de ser nova colega da escola, vivia no prédio paralelo ao meu. A pele mais escura, as unhas infestadas de espigões e o dedo grande do pé a cumprimentar fora das sabrinas deixaram-me intrigada. Nas primeiras semanas, espiei-a no recreio: sempre sozinha, sentada no lancete da colina terrosa que rodeava as traseiras da escola. Chamei-a para as brincadeiras; recebia sempre um encolher de ombros. Na sala, a professora não lhe arrancava uma palavra. Tudo isto aguçou a minha curiosidade, característica natural, sem devolução, e, em conversa com uma das minhas melhores amigas, descobri que a professora a proibira de se juntar a nós. Revoltada, pedi justificações e a resposta “tem piolhos” foi dos argumentos mais absurdos que já ouvi. Em pouco tempo, recebi o mesmo recado punitivo. Hoje teria acrescentado uma resposta à professora, do género sarcástica, como “prefiro não”.
Uma pausa, leitores, para que saciem a impressão que possam começar a sentir quando se ouve ou lê a referência a estas criaturas. Falar de piolhos faz-nos sentir humanos, não é assim? Como gostava de vos apreciar também. Continuemos.
Dirigi-me à rapariga e sentei-me ao seu lado. Não me recordo do que falámos, mas foi com convicção que esfreguei a minha cabeça na dela e, mais tarde, pedi à professora para partilhar a mesa dela. Era altura de ter os meus piolhos de estimação e ensinar uma lição às amigas de sempre.
Antecipam o que aconteceu, mas contarei para que não se perca a essência desta crónica. Assim que a minha mãe se apercebeu, já não era coleção, tornara-se numa “piolhocultura” cujos efeitos colaterais se revelaram dolorosos: desde besuntar o cabelo com azeite e colocar um saco plástico para asfixiar a piolhada, até ao champô, vindo do Porto (anos oitenta difíceis!), com um cheiro tão sem palavras (coloquei uma mola de madeira no nariz). Finalmente o culminar em feridas por toda a cabeça que levaram à decisão derradeira: um corte à rapaz. Apesar do sofrimento (amava os meus cabelos compridos), valeu a escolha. A Catarina, já não a miúda escanzelada, passou pelo mesmo processo e isso fortaleceu a nossa amizade e, por consequência, o elogio à minha atitude levou a que o resto das amigas tentassem, em alguma altura, arranjar piolhos de estimação.
São gargalhadas, o som que se espalha no silêncio noturno. Se ignorasse a emoção, talvez eu desejasse não ter experienciado a tortura cabeluda; no entanto, seria desprezar a humanidade que me leva hoje a transformar os significados que as experiências menos agradáveis nos ensinam. Por isso, a todo um passado telhudo eu brindo com “prefiro sim”.


