Um dos livros mais extraordinários que li, devido à dureza do conteúdo. Mergulho implacável na guerra, identidade e memória, que nos deixa um legado marcante de cenas e personagens.
A obra, publicada entre 1986 e 1991, é composta pelos romances O Caderno Grande, A Prova e A Terceira Mentira. Mosaico narrativo que desafia constantemente as noções de verdade e ficção. Fragmentado, como as personagens.
Apesar de espaço e tempo serem indefinidos — as guerras e as suas consequências variam pouco —, podemos deduzir que a ação se passa na Hungria, durante a ocupação alemã e, posteriormente, soviética. A autora, nascida neste país, em 1935, fugiu para a Áustria em 1956, fixando-se mais tarde na Suíça. Escapava da intervenção militar soviética, que reprimiu uma revolta popular contra o regime político imposto após a Segunda Guerra Mundial.
A obra poderia começar pela expressão “Era uma vez…”, mas essa fórmula comprometeria a prevalência do sofrimento que a atravessa.
No primeiro livro, O Caderno Grande, conhecemos dois rapazes gémeos, deixados pela mãe aos cuidados da avó, que os trata com dureza, numa zona rural fronteiriça. Como nos contos dos irmãos Grimm. A história é narrada na primeira pessoa do plural, com diálogos secos e descrições breves. Prosa objetiva, quase cruel. Tal estilo pode refletir a dificuldade inicial da autora com a língua francesa, limitação que usou com mestria, mas também a sua experiência como dramaturga. Uma leitura superficial poderia até considerar que a linguagem carece de espessura, de textura, contudo, é deliberadamente usada como instrumento, suporte invisível da narrativa. Secura típica da escola literária da Europa Central, marcada por uma estética de contenção emocional, que acarreta o risco de afastar o leitor, mas também o desafia e fascina. Esta escrita minimalista, acentuada no primeiro livro, intensifica o impacto da história, sem recorrer ao sentimentalismo. Como afirmam os gémeos: «As palavras que definem sentimentos são muito vagas.» Assim, a linguagem reflete a brutalidade do mundo ao redor. Para sobreviver, os rapazes criam um sistema de resistência física e emocional, entre a inocência e a crueldade, registando, num caderno, apenas aquilo que é «comprovadamente verdadeiro.»
No segundo livro, A Prova, a narrativa muda para a terceira pessoa e o tom assume a melancolia que persistirá até ao final. Acompanhamos Lucas. Nenhum dos rapazes havia sido nomeado antes, talvez por uma questão de estilo, comum à época. Voluntariamente separados, os gémeos afastam-se, e o que fica tenta sobreviver à sociedade autoritária e desumanizadora. Saímos da infância brutal, vivida a dois, e entramos na solidão, na perda e na impossibilidade de reconstrução. Surgem paradoxos, discrepâncias, contradições e ambiguidades que nos fazem questionar a existência de dois gémeos — Lucas e Claus, cujos nomes partilham as mesmas letras, apenas dispostas numa ordem diferente — ou de um único indivíduo, dividido em dois. Uma desintegração de personalidade. O jogo de espelhos que a autora nos propõe sobre a natureza humana vai a meio.
No último livro, A Terceira Mentira, o narrador é outro. A história também. Tudo o que acreditávamos saber é recontado de maneira fragmentada. Questionamos espaço, tempo, personagens e acontecimentos. A realidade pode ser apenas um amontoado de versões contraditórias. Um suicídio cometido, outro planeado. Quem é quem? Sabemos que o trauma altera a perceção do tempo e da realidade. Por ser insuportável, talvez seja narrada não como aconteceu, mas como Lucas (e a autora?) gostaria que tivesse sucedido. Ao contrário da continuidade factual entre os dois primeiros livros, o terceiro é feito de contradições. Afinal, a própria narradora avisa-nos que os três são mentiras.
Trata-se de uma obra aberta a múltiplas interpretações. Por vezes, parece não ter havido um plano, o que torna a obra genial. Complexa e muito bem conseguida.
Um engenhoso trabalho ficcional, tecido de uma diversidade de elementos e recursos narrativos aparentemente simples, mas de grande profundidade.
Ainda há a considerar a questão da orfandade, irresistível para alguns escritores. Figuras desfavorecidas e desprezadas, os órfãos têm de fazer o caminho sozinhos. Isto suscita a nossa solidariedade e aceitação da crueldade dos gémeos. Ambos perdem o pai e, metaforicamente, a mãe. A vulnerabilidade de uma criança órfã funciona como símbolo de uma sociedade que abdicou das suas responsabilidades. Ao mesmo tempo. A ausência de vínculos familiares — a avó era pouco protetora — permite-lhes evoluir com mais facilidade. Apesar das várias estruturas familiares, os rapazes estiveram sempre entre o dentro e o fora.
Tal como todas as crianças, também estas representam uma espécie de enigma, por serem semelhantes aos adultos, embora diferentes. Vivem num mundo que criaram para elas. Inquietantes.
Trilogia da Cidade de K. celebra a literatura e a sobrevivência através da escrita.
Inesquecível, confronta o leitor com a brutalidade da existência e a impossibilidade de uma verdade absoluta. Neste universo perturbador, a única certeza é a incerteza. A história alcança o valor máximo na complexidade moral proposta.
Um livro para quem aprecia narrativas psicológicas densas e literatura que desafia a perceção da realidade e não fica fechada nos seus limites.
Que livro!
sugestão, devido à proximidade de ‘pelos’ no parágrafo seguinte: devido à dureza…
Existe uma incoerência de número nesta frase: “separados” (plural), refere-se a gémeo (singular).
Também penso que ‘fica’ (onde?) gera um pouco de ambiguidade.
Sugestões: Voluntariamente separado, o gémeo que fica tenta….
ou
Voluntariamente separados, os gémeos afastam-se, e o que fica, tenta sobreviver….
Talvez ficasse melhor acrescentar algo a seguir a ‘fica’
Acho que leva vírgula
Penso que fica mais claro: cujos nomes partilham as mesmas letras, apenas dispostas numa ordem diferente.
Se a intenção é manter Lucas apenas como sujeito, o verbo está correto, de contrário, seria melhor colocar o verbo no plural: ‘gostariam’
Sugestão:
Como Lucas — e talvez também a autora — gostariam que …
mentiras (?)
sugestão: o interior e o exterior


