O Muro

O muro era tão alto que nem se vislumbrava o topo. E tão liso que era impossível trepá-lo. Tampouco se sabia de que material fora feito, nem como fora construído. Parecia sempre ali ter estado e, de facto, assim era. Jamais constara nos livros de história, nem fora sujeito nas estórias de alguém.

Também se ignorava qual surgira primeiro — o muro ou as cidades. De um lado a Cidade Iluminada, do outro a Cidade Escurecida. No primeiro lado o sol era rei, no segundo a lua soberana. Em momento algum qualquer das duas se dera conta da existência da outra. 

Na Cidade Iluminada o sol permanecia quieto. Nunca um casal apaixonado pudera apreciar um pôr-do-sol, nem um qualquer madrugador se deliciara com o seu nascer. Pudera, não sabiam tal coisa possível. Todos os cidadãos tinham os relógios bem sincronizados, para saber quando ir dormir. A escuridão total só era possível na clausura do lar, de portas e janelas fechadas. Mesmo assim, sentindo a claridade lá fora, a tentação espreitava amiúde — porquê ficar em casa, com um dia tão bonito?  

Já a Cidade Escurecida vivia em tons prateados. A lua, sem fases, permanecia cheia. Exibia-se intensa e brilhante. Nunca se ausentava. Tal como acontecia na cidade vizinha, os habitantes mantinham os relógios acertados, caso contrário, não saberiam receber a manhã; também por estes lados, ninguém vira antes um amanhecer.

Por entre a população, pálida e melancólica, distinguiam-se diferentes géneros. Havia uns mais sossegados, saíam para o trabalho de “manhã”, cumpriam as suas obrigações e regressavam. Independentemente da direcção tomada, a linha do horizonte dos edifícios industriais acompanhava-os. Por vezes, passavam tempo num bar aconchegante, para conversar com os amigos, enquanto ouviam uma voz suave a cantarolar num palco acanhado. A atmosfera mostrava-se indistinta, preenchida pela fraca chama das velas e de lâmpadas demasiado assustadas para brilhar com a devida intensidade.

Outros residentes revelavam-se menos contidos, filhos da noite, poderíamos chamar-lhes, teimavam em culpar a escuridão pelo seu comportamento endemoniado. Não convinha cruzarmo-nos na rua com tais seres, pois sabe-se lá.

Na Cidade Iluminada dançava-se ao som de um ritmo mais forte e vibrante. Eram frequentes as animações de rua e as festas ao ar livre. Os habitantes, de pele prematuramente envelhecida, passavam demasiado tempo fora de casa, numa tentativa de prolongar os dias.

Também neste lado do muro, sob o sol, se manifestavam diferentes disposições. Os correctos tentavam usufruir, da melhor forma, da luz oferecida. Praticavam desporto ao ar livre, trabalhavam, passeavam com as famílias, plantavam árvores. Mas os cidadãos incomuns, também os havia, mostravam-se inquietos, excessivos, com demasiada adrenalina e serotonina a fluírem pelo corpo e passavam a maior parte do tempo à procura de algo que os completasse. Cada acto cometido, só o era uma vez. Cada acção pedia outra mais intensa. Não era suficiente andar de bicicleta, era preciso um desporto mais radical. Não era suficiente assaltar um transeunte, era preciso sentir o poder da morte nas suas mãos.

Ivan morava na Cidade Escurecida. Cada dia cumpria a sua rotina. Logo pela manhã, o espelho devolvia-lhe o reflexo de uns olhos sem brilho, conformados. Antes de sair verificava se a roupa no corpo estava engomada e limpa, o bigode bem aparado e o cabelo no lugar. Pegava na mala e dirigia-se ao escritório, onde passaria o dia, que mais parecia ser uma noite.

 O muro ficava junto ao caminho que levava Ivan ao trabalho e o trazia de volta ao lar. Era-lhe indiferente, de tão habituado a passar por ele. Até ao dia em que, de regresso a casa, algo lhe dispersou os pensamentos. Rente ao chão, uma brecha deixava passar alguma claridade vinda do outro lado. Este residente, tal como todos os da sua cidade, para além do luar, nunca tinha visto luz natural; conhecia apenas a artificial. Por isso, não entendeu o que viu — um brilho distinto a iluminar uns modestos centímetros no solo terroso. Achou por bem chamar quem mais autoridade tivesse.

Pouco depois, já um pequeno grupo rodeava a minúscula frecha trespassada por uma discreta luminescência, invasora do terreno infértil. Ninguém lhe toque, ouvia-se, pode ser tóxico. A estas palavras houve quem desse uns passos atrás. Os mais teimosos mantiveram-se no mesmo lugar, de olhos fixos na luz. Ivan estava entre eles. Após conversações entre os senhores da cidade, ficou acordado: estaria sempre um agente da autoridade de guarda, para verificar o progresso, se é que o haveria, da situação.

A visita ao local passou a fazer parte da rotina da maioria da população. Vindos do trabalho, do bar, ou de lugar incerto, tendiam agora a perambular em direcção ao diminuto foco de luz. Era só um pequeno desvio no caminho, nada de mais. Passavam, cumprimentavam o guarda de serviço e olhavam. Pois, diziam, continua tudo na mesma. Uns quantos receavam ver a luminosidade aumentar, outros afirmavam ser um sinal de Deus; pelo contrário, havia quem a reconhecesse como obra do demo. Também aqui havia excessivos, exagerados e radicais. Um destes, à revelia do guarda, atirou-lhe um copo de água, pensando assim apagá-la. Nada aconteceu, dando força às palavras dos pregadores que vaticinavam o fim do mundo. Ivan sentia um desconforto perante tais palavras, um pequeno aperto interior, para ele, inexplicável.

Era dos que mais tempo costumava ficar a conversar com o guarda e, após vários dias, os agentes, Ivan e os habituais deambuladores do caminho junto ao muro, perceberam uma transformação: algo nascia.

Passaram a estar dois oficiais no local. Quem sabe o que brotaria da terra, acarinhada por aquela chama brilhante. O que quer que fosse continuava a crescer e com poucos centímetros parecia ameaçar toda a cidade.

Ivan não se sentia assustado. Durante a rotina matinal, o espelho, mais generoso, devolvia-lhe agora um reflexo de olhos menos baços, denunciando até um recatado fulgor.

Por esta altura, os ilustres do município discutiam e argumentavam sobre a melhor linha de acção. Ignoravam como dali poderia brotar qualquer coisa, como por exemplo, um botão de flor. Desconheciam ser esse o nome, mas isso era o de menos. O receio da coisa desconhecida era o que os levava a agir. Alguns ilustres pediam para aguardar, esperar resultados, saber algo mais; um ou outro queria pegar-lhe fogo. Discordavam no modo de proceder. Reuniram, por isso, os habitantes em assembleia. Chamaram os mais ilustres dos ilustres, os mais especialistas dos especialistas, os mais poderosos dos poderosos e chamaram ainda o cidadão mais comum. Foram dias de intensa discussão, acordos e desacordos e muitas dores de cabeça. Por fim, o mais supremo dos supremos decidiu, considerando, de acordo com a sua opinião, o melhor para a cidade.

No dia seguinte, ou talvez fosse ainda noite, acercaram-se à ervinha. O caule, de onde nascera uma humilde flor, apresentava-se mais robusto. Ao ver tal evolução o supremo entendeu ter tomado a decisão correcta. Sabe-se lá que proporções aquilo poderia tomar.

A curta distância uma multidão assistia. Olhares aflitos misturavam-se com outros indiferentes e ainda com os que pareciam dizer já era tempo de fazerem alguma coisa. Bocas semi-cerradas murmuravam rezas e ladainhas. Mãos sobre o peito denunciavam respirações aceleradas. Ivan mantinha-se quieto; apertava as mãos, dentro dos bolsos do sobretudo, ciente do que poderia acontecer.

Prossigam, disse o supremo dos supremos. De imediato, um agente vestido com um fato protector aproximou-se. Estava coberto dos pés à cabeça. Abeirou-se da flor. Os habitantes quase sustiveram a respiração. Notaram a luva grossa, colossal, quando comparada com a flor; rápida, e usando de uma força desnecessária, aproximou-se e arrancou-a. Os habitantes respiraram de novo. Colocou a planta numa caixa e selou-a. Dali, seria levada para ser incinerada.

Houve quem suspirasse de alívio, houve quem olhasse os céus, houve até algum desmaio. Houve, ainda, quem cerrasse os dentes e franzisse o sobrolho. Uma discreta lágrima escorreu pela face de Ivan; tão discreta que ele quase não deu por ela.

O trabalho seguinte pertencia ao operário; tapou a pequena abertura com cimento, apagando todo e qualquer vestígio do foco de luz natural.

Está tudo bem, dizia o supremo, regressem às vossas casas. Já não há nada para ver.

A custo, a multidão foi-se dispersando.

Falou-se do assunto de tempos a tempos, mas aos poucos foi sendo esquecido. O acontecimento nunca fez parte dos livros de história nem foi protagonista de outras estórias.

No outro lado nada se alterara. A luminosidade escapara-se pela abertura, mas o inverso não acontecera. Nenhuma nesga de escuridão tivera coragem para fugir.

 

A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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AUTOR(A)
Alexandra Maria Duarte

Nascida em Castelo Branco, rumou a Lisboa para estudar Línguas e Literaturas Modernas. Após a licenciatura fez uma pós-graduação em Tradução. Entre 2000 e 2001 participou na redacção e edição do livro «Ribatejo – Receituário Regional Tradicional», tendo também colaborado, ocasionalmente, com a revista «Cardápio – Saber Viver». A paixão pela escrita sempre se manteve, mas só em 2020 começa a frequentar cursos de escrita criativa. Vem a publicar o seu primeiro conto na colectânea «Não vão os lobos voltar», obra que chega ao público em 2021 e, no ano seguinte, apresenta o primeiro conto infantil na colectânea “Contos que contas tu”.

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