falo ao meu companheiro em inutilidade, ao homem do bairro social
cuja janela olha os olhos da minha janela,
com plena igualdade, perfeita irmandade. tu, tu da cara e das paredes
de um azul cansado, teu olhar de quem
mais conhece outros tetos azuis sem resguardo.
tantas noites, estranho, me viste dançar no meu quarto, marejando horas loucas, doces insónias –
quantas tardes vi o teus finos
braços desnudos, brancos como ossos
escostados ao estrado, namorando as brisas de março.
não sei o teu mal, o teu azar de enjaulado domiciliário; não conheces o meu, embora – como eu – aparentes ser desempregado, largado
na maré dos dias, desregrado.
quem ama tanto o azul das janelas como alguém que a elas está casado? este matrimónio
dura há demasiado tempo, toda uma meia-eternidade. querido estranho,
velho namorado, se formos pessoas de verdade quando formos pessoas de verdade
em que lado da rua nos deveremos encontrar?
pois se eu me resguardo no meu claustro, fugida de pragas e de dores,
de desentenderes e ardores, e tu – coitado! – vives no teu, e pouco acompanhado –
podemos dizer que conhecemos bem os nossos hábitos. evitamo-nos, nunca trocamos
aceno algum. não fazemos da compreensão um caso. e no entanto quando
– se –
me libertar deste quarto, desta casa, desta frágil carne, serás quem melhor lembrarei,
de ti, estranho, estranho que me viste dançar do outro lado do bairro.