querido estranho

falo ao meu companheiro em inutilidade, ao homem do bairro social

cuja janela olha os olhos da minha janela,

com plena igualdade, perfeita irmandade. tu, tu da cara e das paredes

de um azul cansado, teu olhar de quem

mais conhece outros tetos azuis sem resguardo.

 

tantas noites, estranho, me viste dançar no meu quarto, marejando horas loucas, doces insónias –

quantas tardes vi o teus finos

braços desnudos, brancos como ossos

escostados ao estrado, namorando as brisas de março.

 

não sei o teu mal, o teu azar de enjaulado domiciliário; não conheces o meu, embora – como eu – aparentes ser desempregado, largado

na maré dos dias, desregrado.

 

quem ama tanto o azul das janelas como alguém que a elas está casado? este matrimónio

dura há demasiado tempo, toda uma meia-eternidade. querido estranho,

velho namorado, se formos pessoas de verdade quando formos pessoas de verdade

em que lado da rua nos deveremos encontrar?

 

pois se eu me resguardo no meu claustro, fugida de pragas e de dores,

de desentenderes e ardores, e tu – coitado! – vives no teu, e pouco acompanhado –

podemos dizer que conhecemos bem os nossos hábitos. evitamo-nos, nunca trocamos

aceno algum. não fazemos da compreensão um caso. e no entanto quando

– se –

me libertar deste quarto, desta casa, desta frágil carne, serás quem melhor lembrarei,

de ti, estranho, estranho que me viste dançar do outro lado do bairro.

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AUTOR(A)
Maria Duran

Maria Duran é uma investigadora e escritora. Completou Mestrado em História de Arte e Património pela Faculdade de Letras, e Pós-Graduação em Curadoria de Arte. Participou no Festival de Poesia de 2023, e tem publicado poesia e prosa em revistas, zines, blogs e antologias portuguesas, americanas e canadianas, como a Gilbert & Hall Press, Pollux Lit Mag, Fábrica de Terror, Black Moon Mag, e P’ARTE.

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